30 jun, 2023 - 06:30 • Beatriz Pereira
“Já vi o lado mau, já vi o lado bom e agora sei que 99% da Polícia são pessoas boas”. João Gil tem 22 anos e é recluso no Estabelecimento Prisional Leiria-Jovens. Mas não só. É também coprotagonista do podcast "Dois Olhares", o projeto em formato áudio que procura colocar frente a frente dois lados quase sempre em lugares opostos da barricada.
“É um projeto que junta um recluso e um polícia num diálogo sobre temas difíceis, como o racismo, a vida nos bairros, o consumo de drogas, a intervenção policial”, revela a jornalista Patrícia Duarte, moderadora das conversas.
O desafio foi lançado pelo comandante distrital de Leiria da PSP, José Figueira, e é “único e pioneiro em Portugal”, diz o também protagonista da história, o comissário da PSP de Leiria, André Antunes.
“Nós não nascemos santos nem demónios, mas sim com capacidade de aprender a escolher”, lembra André, que reconhece o privilégio de integrar o projeto que “põe frente a frente a face da polícia, que investiga os crimes, e alguém que está preso por isso mesmo”.
Pergunta é deixada pela Comissão Nacional Justiça (...)
Entender o olhar de quem comete o crime e, por outro lado, quem o combate é, portanto, o propósito do podcast, unindo dois mundos que “juntos, conseguem derrubar aquelas imagens estereotipadas que se têm de um e de outro e sensibilizar a comunidade para a importância da reinserção social, tornando a sociedade mais inclusiva”, diz Patrícia Duarte.
O podcast resulta de uma parceria entre o jornal "Região de Leiria", o Estabelecimento Prisional e o Comando Distrital de Leiria da PSP. Ao longo de dez episódios, um para cada tema, João Gil e André Antunes encaram-se perante os assuntos que, à partida, parecem incompatíveis para ambos.
“Neste podcast falamos das igualdades que existem na diferença, dos estereótipos que muitos pensam mas poucos falam, da quebra de barreiras, partilha de experiências e culturas. Para mim representa uma enormíssima oportunidade de crescimento, porque acredito que há muito a aprender com as partilhas do João Gil”, afirma o comissário da PSP, André Antunes, de 32 anos.
Também João Gil reconhece o impacto que o podcast trouxe já à sua vida. “Nunca pensei chegar tão longe e compreender o lado da polícia e a forma como eles atuam. Eu consegui compreender, porque o comissário André explicou-me todos os protocolos que têm de usar e agora consigo entender mais o lado da polícia”, partilha.
“Por detrás de uma farda está uma pessoa e por detrás de um recluso está outra também”, diz João.
Um cartaz afixado no Estabelecimento Prisional Leiria-Jovens foi suficiente para João Gil ganhar coragem e revelar a sua história.
O anúncio foi divulgado no espaço onde era e ainda é recluso e propunha ao grupo de jovens presos, já em regime aberto, que se inscrevessem num projeto. Os detalhes eram poucos.
Seis reclusos quiseram dar a voz ao projeto e ao longo de várias sessões, junto com a jornalista Patrícia Duarte, um conjunto de temas foi colocado em cima da mesa para serem debatidos em cada episódio.
O próprio nome, “Dois Olhares”, foi escolhido pelo grupo. “As sessões colocaram os reclusos a falar e a refletir sobre as suas próprias histórias, as suas emoções e, ao mesmo tempo, levou-os também a colocarem-se no lugar do agente da PSP e a pensarem na forma como atuam”, diz Patrícia.
“Este processo de preparação fez com que os reclusos sentissem que a opinião deles conta e que é algo de útil e de valor que podem fazer pela sociedade, porque são pessoas com um nível de autoestima muito baixo”.
De todos, João Gil foi o escolhido para dar a voz. Destacou-se pela capacidade de comunicação e dicção, mas também pela sua postura.
André Antunes, “parceiro” de projeto, avalia a figura de João: “Se o João Gil, por remota hipótese, neste percurso mais penoso da sua vida, não encontrar alguém que o inspire, a ponto de sair da prisão uma pessoa melhor, que seja ele próprio o seu exemplo de sucesso. Que se permita mostrar aos outros o que o seu exemplo de humildade, inteligência e força de vontade o fizeram atingir.”
Condenado a seis anos e três meses de cadeia por coautoria de homicídio na forma tentada e agressão à integridade física qualificada, João Gil viu a sua vida desmoronar-se depois de um jantar com a família. A partilha é feita logo no primeiro episódio do podcast, quando conta a sua história.
"Estou preso por causa de uma rixa que aconteceu num estabelecimento comercial. O meu tio acendeu um cigarro na parte do restauração e quando o cigarro já estava apagado, o dono do restaurante aproximou-se de forma agressiva", conta.
Depois de uma troca de palavras acesa, os ânimos exaltados levaram João partir para a violência. "O meu tio, que era cego de um olho, disse que não conseguia ver nada, depois de ter levado com uma cadeira de ferro na cabeça. Como ele é um 'segundo pai' para mim, eu pensei que tivesse ficado cego totalmente. Foi aí que a situação descambou e levou às agressões que nunca deviam ter acontecido", diz o jovem.
“Nunca deixei de ver que errei, tenho consciência crítica relativamente a isso"
Em quase 25 minutos de episódio, João não se coibiu de partilhar abertamente o seu percurso. "Nunca tinha entrado numa esquadra e não tinha antecedentes criminais . Tinha a minha profissão, era comerciante de automóveis. A minha empresa ia abrir dia 26 de janeiro e dia 19 de janeiro vou preso. Fui jantar e entretanto fui parar à prisão".
João pertence à comunidade cigana, um facto que acredita ter motivado a violência que o levou à prisão. "Nós temos um seio familiar muito fechado e queremos proteger-nos uns aos outros", diz. Mas confessa, que acima de tudo, foi "estar no momento errado à hora errada".
Sobre o estigma associado à sua etnia, João diz que os vídeos captados pelas câmaras de vigilância do estabelecimento comercial e que foram partilhados em todas as redes sociais, um pouco por todo o mundo, levaram muitas pessoas a discriminar o ato pela etnia. "Antes de seremos condenados pelo juíz, já tinhamos sido condenados pela população em todo o mundo, que assistiu aos vídeos", explica.
No entanto, ressalva que a opinião da comunidade cigana sobre os polícias é positiva. "A comunidade cigana olha para os polícias como pessoas de bem, que admiramos". E acrescenta. "Eu sei que se eu estiver mal, eles estão lá para mim, estão lá para nos proteger".
De dez
episódios, o primeiro distingue-se pela coragem de João Gil assumir os erros que o levaram à prisão e os receios de um futuro fora das quatro
paredes do estabelecimento prisional. A opinião é da moderadora dos diálogos. “Ele
está a expor-se muito, porque ele, na verdade, não sabe se tudo aquilo que ele
está a contar no podcast vai ajudar ou prejudicar a sua reintegração na
sociedade”, diz Patrícia Duarte.
João dá a resposta. “Estou num momento de reclusão. Já ando com saídas precárias, mas sinto-me integrado na sociedade. Sou uma pessoa nova e só tenho de agradecer por isso”, diz.
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Sem medos e impedimentos, João Gil partilhou a sua história e, frente a dezenas de comandantes da polícia, nas comemorações do 149.º aniversário do Comando Distrital de Leiria, em Pombal, agradeceu a oportunidade de falar perante “altas entidades e pessoas tão importantes e de estar no meio de um público como este”.
Vários elementos do Comando Distrital da PSP de Leiria, o presidente da Câmara Municipal de Pombal, Pedro Pimpão, e também o diretor nacional da PSP, Manuel Magina da Silva, marcaram presença.
“É uma excelente iniciativa e é obviamente uma boa prática, que será recomendada aos vários comandos que sigam ou pelo menos que se inspirem neste projeto, que é louvável”, diz Magina da Silva.
Sobre a Polícia de Segurança Pública, o diretor nacional lembra que “cada um tem a sua função dentro da nossa sociedade e o da PSP é garantir o cumprimento da lei, a paz social e a prevenção criminal e repressão criminal quando os crimes são cometidos”.
“Queremos fazer pontes em vez de muros e queremos reatar o contacto, mesmo com as pessoas que são alvo da nossa ação”, sublinha.
Quase longe dos muros e próximo de uma ponte com a Polícia e com o próprio futuro, João Gil assume a surpresa que é, agora, ver o projeto a ser apresentado.
“Quando me inscrevi no podcast 'Dois Olhares', nunca pensei que tivesse esta dimensão”, assume.
Depois de longas conversas e gravações, agora, a perceção sobre as forças policiais transformou-se. “Eu vejo a polícia como pessoas boas. Muitas vezes as pessoas do bairro têm o estigma de 'é polícia, é mau, devemos fazer mal'", diz João Gil.
Para o jovem, "algumas pessoas da sociedade civil nunca vão compreender o lado da polícia, tanto como a polícia nunca vai entender porque é que estas pessoas não se deixam deter e porque é que reagem tão mal, por vezes com pancadaria e com toda a força que têm. Eu consegui compreender”.
Também a transformação aconteceu em André Antunes, comissário da PSP e igualmente protagonista do “Dois Olhares”. “No fundo tudo conflui na capacidade de parar, pensar, sairmos um pouco de nós próprios para que daí, com o mínimo de opacidade possível, consigamos de facto ver sem os nossos olhos, mas sim com o outro olhar”.
Se um recluso me bater à porta para pedir emprego, como é que
eu vou acolher? Estou disponível para lhe dar uma segunda oportunidade? Consigo
confiar? Vou sentir-me seguro? Consigo conviver com ele? Para Patrícia Duarte,
estas são as questões que farão o público pensar no assunto, depois de ouvir o
podcast, que será lançado esta sexta-feira, 30 de junho. A partir de hoje, as dúvidas poderão ser
respondidas. João Gil e André Antunes querem dar as respostas.