Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

A série sobre a pandemia foi feita antes da pandemia

12 fev, 2021 • Opinião de Henrique Raposo


“Leftovers” é sobre o luto. É por isso que não foi um grande sucesso de público. Mas consegue ser em simultâneo absolutamente clássica e absolutamente original.

“Leftovers” é a série mais estranha. Não tem rival, está num mundo à parte. Goste-se ou não, “Leftovers” é única. Eu gosto; venero aliás a sua estranheza. É, sem dúvida, uma das minhas preferidas; está lá em cima no panteão ao lado de "The Wire", "Gomorra", "Chernobyl", "Girls", "True Detective", "Amiga Genial", "Deadwood", "Angels in America", "John Adams".

“Leftovers” consegue ser em simultâneo absolutamente clássica e absolutamente original. Como é que consegue esta proeza? Tem uma forte inspiração bíblica. Claro que é a peça mais clássica e estruturante do nosso ADN histórico, mas, na atmosfera pós-moderna e anti-religiosa do nosso tempo, a Bíblia também é um objecto radical e de ruptura. Em “Leftovers” sentimos, de resto, um certo temor teológico, aquele temor que nos perturba.

“Leftovers” é sobre o luto. É por isso que não foi um grande sucesso de público. Não é fácil acompanhar estas personagens danificadas, exige estômago e dimensão literária. Logo à entrada, quando ouvimos pela primeira vez a banda sonora inesquecível de Max Richter, percebemos ao que vamos: é um mergulho na dor, vamos entrar na biopsia de uma sociedade traumatizada por um evento bíblico, uma peste, uma praga. É por isso que tendo dito, meio a brincar, meio a sério, que esta é a série sobre a covid-19, apesar de ter sido filmada entre 2014-2017.

Ora, se decidir ver esta série, o meu caro leitor deve fazer uma coisa antes: recuperar a sua imaginação ou o seu fascínio pelo Antigo Testamento. Esta é talvez a melhor forma de explicar a atmosfera e a premissa surreais de “Leftovers”: imagine que um dos grandes eventos bíblicos do Génesis é transposto para o nosso tempo; neste caso, há um evento cataclísmico que faz evaporar dois por cento de toda a população mundial; de repente, alguns milhões de pessoas desaparecem. Os restantes, os outros, os que se sentem os restos apesar de serem 98%, os tais “Leftovers”, têm agora de lidar com o luto, quer o luto individual, quer um luto coletivo.

Como é que se volta à normalidade depois de um evento tão lancinante? Aparecem duas abordagens diferentes. De um lado, temos um culto estranho, os “Guilty Remnant”. Vestem-se de branco, não falam, estão sempre a fumar, um sinal da desesperança. A sua resposta ao luto é a ataraxia, isto é, recusar qualquer tipo de laço amoroso ou até familiar; esses laços não fazem sentido, dizem. “Não há família” é o seu mantra. A ataraxia é a garantia da ausência de dor através da ausência de amor. “Guilty Remnant” representam, portanto, uma espécie de suicídio colectivo. A sociedade deve suicidar-se, pois o desaparecimento de milhões de pessoas mostra-nos um mundo sem sentido ou redenção.

Este niilismo é confrontado pelo protagonista da série. Kevin é um polícia bonito e forte. Entramos assim num estereótipo? Nada disso. Poucas vezes se viu um protagonista homem assim, tão frágil, tão delicado, sempre à beira das lágrimas e das dúvidas. Kevin é pintado como um profeta bíblico. Se bem se recorda, caro leitor, os profetas são sempre imperfeitos e implausíveis como salvadores. Basta recordar Jonas. Kevin lá vai suportando tudo, vai sobrevivendo, pois agarra-se à ideia salvadora: a família conta. O nosso profeta redime-se assim do anterior desejo de divórcio, um desejo que o estava a marcar antes do tal desaparecimento bíblico de milhões de pessoas. Depois desta “departure”, ele percebe como estava a ser precipitado e até idiota. O que interessa, apesar de tudo, é voltar a casa, é voltar à família, sendo que a família é aqui um conceito movente e que Kevin vai construindo à medida que caminha. Ele encontra o amor duas vezes ao longo das três temporadas, forma na prática duas famílias, cuida da filha biológica, mas também de dois filhos adotados. Com toda a sua fragilidade, Kevin diz-nos que, apesar de ser provável a ideia de que vivemos num mundo sem salvação, o nosso dever é continuar a tentar a decência. Este mundo está porventura perdido, sim, mas isso não legitima a nossa desistência.

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