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Dia da Criança

Ser criança em Angola. Milhões sem registo e fuga à paternidade é drama “muito grande”

01 jun, 2020 - 21:28 • Olga Leite, correspondente em Luanda

Presidente do Instituto Nacional de Apoio à Criança garante que não é preciso mais legislação, falta moralização da sociedade.

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São 11h30 da manhã de uma sexta-feira, numa rua da baixa de Luanda. Adilson, Raimundo e Guilherme limpam carros e engraxam calçado numa rua da baixa de Luanda. A Renascença pergunta-lhes o que fazem por ali e quanto ganham.

“Depende dos clientes, mas tenho dias que ganho 1.000/1.500 kwanzas (1,50€/2,30€). Levo para casa, para cozinhar”, diz Adilson. Ao lado, Raimundo explica que limpa carros e às vezes engraxa sapatos.

No entanto, confessam, esta não é a vida que desejam.

Adilson diz que gostaria de “estudar, formar-se, ser alguém”. Raimundo usa a mesma expressão. “Gostaria de ser alguém na vida, engenheiro”. Guilherme junta-se à conversa. “Gostaria de ser alguém, trabalhar num bom sítio, se formar, ajudar a família”.

Guilherme adianta a conversa sobre dificuldades.

”Esta vida é muito difícil, porque às vezes não temos nada para comer. Ficamos assim durante o dia e no dia seguinte tentamos acordar para fazer alguma coisa para comer. Tenho dois irmãos, vivo com a minha tia. Sou lavador de carros aqui no parque. É isso, madrinha. Sonho fazer coisas boas, trabalhar, é só disso que eu vivo, madrinha”, acrescenta.

Em poucos lugares do mundo o repórter é tratado com este abraço em forma de palavra. E é de tal forma que nos leva para dentro daquela criança e do seu retrato de vida.

Fazem parte dos números do trabalho infantil, uma das muitas formas de violência contra as crianças. Todos os dias o Instituto Nacional da Criança (INAC) atualiza os números da violência contra as crianças.

De janeiro até 15 de maio o número já vai nos 1.427 casos: fuga à paternidade (677); exploração de trabalho infantil (299); disputa de guarda (155); negligência (107); violência física, psicológica e sexual (116); tráfico de crianças (13); abandono (43) práticas de feitiçaria (7), entre outros. Em 2019, por esta altura os números eram superiores.

Fuga à paternidade, um dos principais dramas sociais

“Nós somos 6. O meu pai já deixou a minha mãe. Não tenho registo e não ando na escola”, diz Adilson. “Somos seis na mesma casa. O meu pai e a minha mãe separaram-se e estamos com a minha tia”, relata Guilherme.

“Muito grande, muito grande, muito grande”. É o que diz o presidente do INAC, Paulo Kalessi, sobre a unidade de medida do drama social que é a fuga à paternidade em Angola.

Paulo Kalessi, Presidente do INAC – Instituto Nacional da Criança, assume que nos casos de fuga à paternidade, na sua maioria, estão envolvidos agentes da Polícia Nacional e militares das Forças Armadas de Angola (FAA).

“Nos casos de fuga à paternidade na sua maioria estão envolvidos agentes da Polícia Nacional e das FAA. São pessoas devidamente identificadas”, explica.

Kalessi garante que o INAC, através do Ministério da Ação Social, Família e Promoção da Mulher, conseguiu “estabelecer uma relação com as áreas competentes dos Ministérios do Interior e da Defesa Nacional e do Centro de Mediação da Organização da Mulher Angolana (OMA), de forma a responsabilizar esses cidadãos, nos termos da lei militar, nas suas unidades”.

“Não basta fazê-lo a nível civil, descontando no vencimento, mas tem que haver responsabilização na despromoção ao nível da carreira militar. Ontem nós convocávamos o pai e ele não comparecia, porque é polícia. Hoje notificamos o próprio agente e damos conhecimento ao seu superior hierárquico, para que ele seja dispensado e é escoltado até aqui. O Comandante do posto tem conhecimento das medidas e do que ficou assumido. Se no prazo de dois meses a criança não for registada a pessoa em causa será despromovida. Com estas medidas contamos que este ano os números baixem”, diz.

Noutra via o INAC está a trabalhar com a UNICEF na atualização da proposta da Estratégia Nacional de Prevenção e Combate da Violência Contra a Criança.

Paulo Kalessi assume claramente que Angola não precisa de mais legislação para colocar a criança como prioridade do Estado, o que falta mesmo é a moralização da sociedade.

“Com a liderança que temos e tendo em conta a dimensão da fuga à paternidade, em quase todos os fóruns já se debate a possibilidade de exigir que, para assumir determinados cargos públicos ou políticos, o currículo familiar tem de contar muito, porque não podemos ter, por exemplo, um diretor do INAC, ou outros, com este problema. Que moral vai ter, como é que vai sancionar os seus subordinados se ele também não assume os seus filhos?”, argumenta.

Kalessi antevê que Angola está “estamos a caminhar para um país em que as questões familiares vão contar muito alto”.

O presidente do INAC adianta ainda que estão “também a trabalhar com o Ministério da Educação, para no caso de professores acusados de não assumirem os filhos serem também responsabilizados”.

”Como é que um professor, que é o espelho da criança, não assume o seu próprio filho? Que moral tem?”, diz.

Milhões de crianças sem registo

Outro grande problema, em Angola existem quatro milhões de crianças até aos cinco anos sem registo. Hoje há mais conservatórias, postos móveis, registo gratuito para pais e filhos, campanhas nas escolas e registo nas maternidades. Ainda assim há práticas culturais e crenças que se sobrepõem.

“Porque primeiro o avô ou a avó têm que ver a criança e só depois, em função disso, a avó vai autorizar se aquela criança é da família ou não. Também quem tem que dar o nome, é o avô quem escolhe em função das características do bebé. Depois há também, claramente, a falta deste hábito de registar as crianças, porque muitos dos pais também não têm registo”, lamenta o Presidente do INAC.

Um peso esmagador de tradições e crenças ancestrais, em conflito permanente com a proteção da criança. O caminho faz-se longo nesta contínua e imperiosa mudança de mentalidades. O INAC não baixa os braços e vai avançar com um inquérito sobre Crenças e práticas culturais que fomentam a violência contra a criança.

No terreno, chamou o Ministério da Cultura à colação para fazer a ponte, com os sobas, as autoridades tradicionais.

“Nós temos hoje ainda nas zonas rurais o problema do casamento e gravidez precoces, o trabalho infantil, a mutilação genital feminina e a prática de feitiçaria com crianças. Pedimos ajuda ao Ministério da Cultura para chegar aos sobas e dizer que a criança não pode casar antes dos 18 anos, que não pode trabalhar, tem que estudar e o trabalho essencial é aquele que contribui para o seu crescimento como pessoa. A reação muitas vezes é, não isto aqui na nossa cultura não é assim. Aqui, com 12 ou 13 anos, se aparecer alguém já pode casar. Aqui com essa idade a criança tem que trabalhar, porque nós também trabalhámos”, conta Kalessi.

Focado no abandono desta tradição, Paulo Kalessi fala da estratégia montada para a sintonia entre todos os agentes. “Com os nossos colegas do Ministério da Cultura elaboramos um programa de diálogo permanente com as autoridades tradicionais (sobas) para mudar mentalidades e aliarem-se à nossa causa e passarem melhor a mensagem. Resultou”, garante.

“Os números de práticas de feitiçaria diminuíram, a gravidez precoce já é condenada por estas autoridades e até mesmo os casos de adultos que se envolvem com uma criança já não são resolvidos no ‘ondjango’, em família, pagando uma cabeça de gado. Não, agora é caso de polícia, porque já se assume que é crime. Estamos a inverter, uma prática tida até agora como aceite, está a mudar, fruto do trabalho das diversas estruturas”, assegura o porta-voz da proteção à infância.

Políticas e práticas aceites no passado hoje são crime, denunciados muitas vezes na primeira pessoa, pela própria criança, pelo vizinho, pelos professores. A sociedade angolana começa a sentir-se parte do sistema de proteção da criança e denuncia cada vez mais.

A partir do próximo dia 16 entra em funcionamento a Linha SOS Criança. Esta segunda-feira, dia 1 de junho, foi assinado o acordo com o Centro Integrado de Segurança Pública, de Angola, para a operacionalização do número 15015.

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