17 jun, 2020 - 08:46 • Inês Rocha
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Durante a pandemia de covid-19, a esmagadora maioria dos jornalistas (92%) em Portugal teve a preocupação, a nível editorial, de orientar os cidadãos para comportamentos de prevenção e tratamento da doença causada pelo novo coronavírus.
A conclusão é de um inquérito a 200 jornalistas de “praticamente todos os órgãos de comunicação generalistas a nível nacional”, realizado pelo Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho.
“É a primeira vez que isto acontece em regime democrático”, diz à Renascença a investigadora Felisbela Lopes, uma das autoras do estudo. “Pela primeira vez, assume-se o jornalismo como uma parte do combate a esta pandemia”.
A professora universitária lembra que, após o 25 de abril, os jornalistas portugueses “sempre se preocuparam em criar uma distância relativamente aos factos enunciados”, ao contrário dos média noutros países.
“Podemos identificar um ou outro órgão de comunicação que tende a ter uma aproximação mais a esta linha ideológica ou àquela, mas ver assim todos os órgãos de comunicação social, na ordem dos mais de 90% dos jornalistas, a assumirem um posicionamento editorial a favor de uma mudança de comportamento, isso é inédito.”
Felisbela Lopes revela que esta vontade de mudar comportamentos é identificada pela classe como serviço público. “Houve uma preocupação ainda mais acrescida com o rigor, com a procura da verdade com uma informação clara e pertinente, que ajudasse as pessoas num dia-a-dia muito estranho”.
O papel ativo dos jornalistas no combate à pandemia teve, na ótica da investigadora, consequências importantes para o país.
“Se os portugueses ficaram confinados, isto não se deve apenas uma decisão célere do Governo ou às autoridades sanitárias. Deve-se também ao trabalho dos jornalistas, que em termos gerais fizeram um notável serviço público”, considera a professora.
Os dados recolhidos pelos investigadores mostram também que a classe jornalística teve, durante a pandemia, dificuldades no acesso a informação credível sobre a covid-19 e a fontes que os ajudassem a compreender a situação atual.
As respostas dos jornalistas levam os investigadores a outra conclusão: “a comunicação da saúde em Portugal precisa, rapidamente, de passar por uma profunda renovação e reformulação de métodos”, afirma Felisbela Lopes.
A investigadora sugere mudanças: as autoridades de saúde devem mudar os tempos de relacionamento com os jornalistas. “Não podemos ambicionar combater uma pandemia apenas com conferências diárias à hora do almoço”, afirma.
No inquérito, os jornalistas denunciam uma “falta de disponibilidade” das fontes oficiais para responder a questões e partilhar dados.
“Isto quer dizer que, em tempos de confinamento, os jornalistas foram também deixados sozinhos”, afirma Felisbela Lopes.
Por outro lado, a investigadora lembra que “estamos em 2020” e as autoridades de saúde não acompanharam a evolução tecnológica dos últimos anos. “Parece que a comunicação é pensada com os mesmos contornos de há 10 ou 20 anos”, critica.
“Há um trabalho enorme que ainda não foi feito para as plataformas digitais”, que dificulta o trabalho na área do jornalismo de dados, por exemplo.
Um dos grandes desafios desta pandemia, para os jornalistas, foi o combate às “fake news”.
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Para Felisbela Lopes, “isto torna ainda mais urgente a preocupação que as entidades oficiais deveriam ter na comunicação com os jornalistas, porque é também uma responsabilidade das fontes oficiais ajudar a classe jornalística a neutralizar a informação falsa, que está um pouco por todo lado”.
O aumento de “fake news” vem realçar ainda mais a importância do jornalismo. “Em tempo de confinamento, não foi por acaso que o consumo de informação subiu de uma forma verdadeiramente extraordinária, porque em tempos de ansiedade e incerteza as pessoas procuram informação, procuram âncoras que lhes deem a segurança que escasseia nestes tempos”, diz a investigadora.
O inquérito levado a cabo pela Universidade do Minho revela ainda que 68% dos jornalistas inquiridos estiveram em teletrabalho durante os últimos três meses.
Destes, praticamente metade (49,2%) admite que o teletrabalho teve um impacto negativo no trabalho, pela dificuldade em conciliar a vida familiar com a vida profissional. 30,8% diz não ter tido qualquer impacto e 15,4% admite que o teletrabalho dificultou o acesso às fontes.
Felisbela Lopes alerta para o risco de os órgãos de comunicação continuarem indefinidamente em teletrabalho, já que o jornalismo é um trabalho coletivo, que vive da partilha de contactos, experiência e conhecimentos entre pares.
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Por outro lado, a investigadora lembra que o setor, que já estava em crise, viu as dificuldades agravadas pela pandemia.
Quanto a apoios aos meios de comunicação, Felisbela Lopes defende que estes sejam pensados a médio e longo prazo e com foco no consumo de informação de qualidade.
“Há sempre a ideia que a informação é gratuita e é preciso todos terem consciência de que a informação de qualidade tem de ser paga”, lembra a professora universitária.
“Os apoios do Estado devem situar-se também a este nível, o de ajudar as pessoas a consumir informação de qualidade acrescida e de criarem o hábito de pagar por essa informação. Porque aí também estamos a criar hábitos de consumo de informação nas pessoas.”
“Isso até agora não foi feito em Portugal”, conclui.
O Governo avançou com 15 milhões de euros para a compra antecipada de publicidade institucional para ajudar o setor. A investigadora afirma que não chega e que esta não é uma estratégia que ajude o jornalismo a sair de uma crise.