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​Rio de Onor. Aqui a fronteira abre duas vezes por semana

14 mai, 2020 - 18:30 • Olímpia Mairos

Às quartas-feiras e sábados, durante duas horas, entre as 9h00 e as 11h00, a fronteira está aberta para três agricultores.

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Não há regra sem exceção. E Rio de Onor, de Bragança, Portugal, e Rihonor, de Castilla, Espanha, são exceção nas fronteiras, em tempos de pandemia.

As duas aldeias sempre foram como uma só. “Nem mesmo os regimes de Salazar e de Franco separavam os casamentos, os terrenos e todas as atividades de um e de outro lado”, conta Mariano Preto.

Carinhosamente por todos tratado como o Ti Mariano, este habitante de Rio de Onor é o guardião das tradições da aldeia, conhecida pelo comunitarismo, e lembra-se bem que ali a fronteira “só esteve fechada pouco tempo, depois do 25 de abril, porque o capitão Pinheiro se lembrou de fechar a fronteira a cadeado”. “Esteve pouco tempo fechada. Veio cá o Senhor doutor Mário Soares e a fronteira voltou a abrir”, recorda.

Os habitantes de Rio de Onor têm propriedades em Rihonor e os de Rihonor têm terrenos em Rio de Onor. E há casamentos e muitas histórias de vida a unir os habitantes que se dizem “um povo só”.

Devido à pandemia da Covid-19, a fronteira fechou, mas abre duas horas às quartas e outras duas aos sábados de manhã. Isto porque os governos de Portugal e Espanha reconheceram as particularidades de Rio de Onor, onde a atividade do dia-a-dia decorre como se fosse uma aldeia única.

A abertura temporária é controlada pela GNR e pela Guarda Civil. São três habitantes, dois espanhóis e um português, que utilizam a abertura para tratarem dos campos e dos animais. É o caso do espanhol Luís Miguel, com propriedades, ovelhas e colmeias do lado português.

“Não tenho outro caminho, tenho de passar por aqui, para dar o alimento ao gado”, conta à Renascença, acrescentando que tem “mais propriedades na parte portuguesa” e que o tempo é escasso para tratar de tudo”.

A pé, os habitantes dos dois lados vão vivendo sem limites e continuam a circular de um lado para o outro. Mas há atividades que precisam do trator e essas só podem ser realizadas no curto espaço de tempo que a fronteira permanece aberta. “As vinhas estão por cavar, as vinhas estão por podar e por sulfatar e os castanheiros também não foram tratados”, conta.

O sogro de Luís é espanhol, a sogra é portuguesa e têm propriedades de ambos os lados. Por estes dias vai aproveitando ao máximo a abertura da fronteira para passar com o trator para “alimentar os animais” e para realizar os trabalhos mais prementes na agricultura.

A proibição do medo

Para o Ti Mariano, estes tempos “são muito tristes”, diz, “tristes para nós e tristes para a economia”.

“É uma fronteira que dava muita vida. Não só pelo conviver do passar, mas para a economia. Os espanhóis faziam aqui despesa. Era com quem convivíamos, era com os espanhóis. Convivíamos bem e agora estranhamos muito. Estranhamos não só os espanhóis, mas também os portugueses. É uma tristeza não poder conviver”, conta à Renascença.

Para este habitante de Rio de Onor, que aos 88 anos divide o tempo “entre casa e um passeiozinho até à igreja, para cuidar da lâmpada do Santíssimo”, tudo é tristeza.

Quanto à fronteira, diz que “fecharam a fronteira de cima”, mas que “há ali um caminho, que dá para entrar na nossa aldeia. Puseram lá uma corrente provisória, até acabar isto”.

“Esta é uma proibição do medo, com medo de nos contagiarmos. É uma tristeza”, desabafa. “Não foi preciso o Estado separar-nos. Fomos nós mesmos que nos separamos. Se não posso falar com as pessoas, porque é que me vou andar a meter?”, questiona.

Habituado a receber e a conversar com os muitos turistas que anualmente visitam a aldeia, Mariano Preto estranha a ausência de gente nova por ali e realça que “é o turismo que faz movimento na aldeia e na economia. “Oxalá isto acabe muito depressa, não só pelo conviver, mas também para deixar de haver tanta mortandade. É o fim do mundo”, lamenta.

Também Domingos Fernandes, de 75 anos, refere as saudades dos “turistas que vinham em grande número e dos amigos de Puebla de Sanábria”. “Estamos nas maiores férias da vida. Nunca tivemos umas férias tão grandes. Mas é contra a nossa vontade. La vamos até à horta dar uma voltinha. Não temos saído. Mas aquele passeio de turistas, gente de fora, não, não tem aparecido. Temos saudades deles”, conta à Renascença.

Domingos refere que “o cafezinho era o ponto de convívio” entre os habitantes da aldeia e os turistas e que agora estão “fechados em casa”. “O pessoal já é pouco, mas agora, com tudo em casa, não se vê ninguém”.

Do mesmo se queixa Bernardino José Preto, de 86 anos. “Falha muita gente, tudo fechado, parece que estamos de luto… Nunca vi uma coisa assim”, diz. Mas este habitante de Rio de Onor também tem “receio que venha gente de fora infetada”.

A cuidar da horta e a plantar feijões, Helena Fernandes, de 78, desabafa que nunca viu “coisa assim”. “Estamos encurralados. Quero ir a Bragança e não posso”, lamenta.

Uma das últimas aldeias comunitárias

A aldeia de Rio de Onor fica junto à fronteira com Espanha, a 30 minutos de carro de Bragança. Do Porto, são 2h30 e de Lisboa, 5h00.

Rio de Onor é atravessada a meio pela fronteira internacional entre Portugal e Espanha, sendo para efeitos oficiais a parte espanhola distinguida como Rihonor de Castilla, e sendo ambas as partes conhecidas pelos seus habitantes como "povo de acima" e "povo de abaixo", não se distinguindo, assim, de facto, como dois povoados diferentes.

Foi, durante muitos anos, uma aldeia comunitária, um por todos e todos por um. Com regras próprias, os campos eram cultivados pelos agricultores e as colheitas divididas de forma igualitária, o que a tornou um exemplo de sustentabilidade.

Para decidir a ordem segundo a qual os pedaços de terra deviam ser lavrados, tocava-se o sino e convocava-se uma reunião. As famílias também se reuniam para decidir os castigos a aplicar a quem quebrasse as regras estabelecidas. As multas aplicadas eram quase sempre em vinho - quanto maior o delito, maior a quantidade a dar aos outros. E ficava tudo registado numa vara, a vara da justiça.

A aldeia comunitária, com cerca de 50 habitantes, é uma das mais bem preservadas do Parque Natural de Montesinho, com casas típicas serranas em xisto, com varandas alpendradas e dois andares. No de cima, moravam as famílias e no de baixo, ficava o gado, os cereais e outros produtos da terra. As ruas são estreitas e de pedra.

A aldeia raiana é atravessada pelo rio Onor, também conhecido como rio Contensa, e a sua praia fluvial convida a momentos de descanso, junto às águas límpidas do rio. Da sua arquitetura tradicional de xisto, destacam-se a ponte romana, a Igreja Matriz, o forno, a forja, os moinhos comunitários e um Castro medieval.

Por ali ainda se partilham terrenos e moinhos. Na memória fica o rebanho e o boi comunitários, que já não existem. Mantém um modo de administração rural, liderado por dois mordomos designados pelo conselho, assembleia que reúne representantes de todas as famílias, os vizinhos, atualmente em esquema de rotação cíclica, de modo a que todos possam exercer as funções.

O artesanato típico da aldeia engloba peças de cestaria e carpintaria e na gastronomia destacam-se os saborosos enchidos. Das tradições ancestrais de Rio de Onor merecem destaque o rionorês, dialeto que nasceu da mistura do castelhano e do português e que, ainda hoje, é falado na aldeia, e a festa dos Reis (6 de janeiro), um rito da puberdade no qual participam os rapazes solteiros.

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