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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Centeno acha que vai ficar tudo bem. Ou está em negação ou isso é muito bom

09 mai, 2020 • Opinião de Graça Franco


Além da crise sanitária vive-se uma crise económico/social que ameaça ultrapassar a da grande depressão. Só pensar que podemos assistir ao repetir de 1929 causa arrepios.

Não são já previsões. São dados. Alguns ainda incompletos e muito parciais, mas significativos: na América foram perdidos, só em abril, 20 milhões de empregos (um número igual a todos os criados na última década) com a taxa de desemprego a saltar para os 14,5%. Além da crise sanitária vive-se uma crise económico/social que ameaça ultrapassar a da grande depressão. Só pensar que podemos assistir ao repetir de 1929 causa arrepios. Com ondas que se espalham por todo o mundo como as de um tsunami.

Na Europa as previsões, da Comissão Europeia, não são mais animadoras: esta será a maior crise de sempre depois da segunda guerra, e a maior na vida da União. Em média a riqueza, da zona euro, vai reduzir-se em 7,7%, o défice orçamental ultrapassará os oito (contra o máximo de três permitidos pelos tratados), as exportações vão cair quase 13%.

Em Portugal a crise social já está à vista: a corrida ao Banco Alimentar, o regresso à fome em Setúbal, o quase motim para a recolha de bens alimentares junto à Mesquita da Amadora mostram como bastaram dois meses com a economia informal parada para o tecido social abrir enormes brechas. Afinal, há um mundo de empregos que fogem à máquina fiscal e da segurança social e constituem o ganha-pão de muita gente. António Costa faz bem quando lhes promete apoio imediato a troco, para futuro, da entrada no sistema.

Mário Centeno voltou a repetir, na entrevista à RTP, que o lay-off pode estar a travar o desemprego de mais de um milhão de trabalhadores, mas ou os apoios chegam depressa ou esta bolha pode explodir em falências escusadas. Em março as inscrições nos centros de emprego registaram mais de 52 mil novos pedidos, seguidos de outros novos 75 mil, em abril.

O ministro das Finanças acredita que o pior já passou e espera no final do ano atingir uma taxa de desemprego em torno de 10%. Se assim for, não se repetirá o caos social sentido na última crise quando o desemprego chegou a atingir os 17%. Mas basta um falhanço no ritmo do desconfinamento para se poder deitar tudo a perder.

Talvez faça sentido estudar agora melhor as novas teorias económicas que defendem algumas medidas inovadoras. Na aparência podem até parecer radicais, mas pelo contrário, talvez permitam agora evitar os erros das velhas receitas, garantindo eficácia em novos tempos. A nossa ministra do Trabalho e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, assumiu o risco e a coragem de as defender, esta semana, em vários jornais europeus incluindo o Público (num texto co-assinado com Pablo Iglésias, o homem da Podemos espanhola e vice-presidente do Governo e Nunzia Catalfo, a ministra do trabalho italiana publicado), a criação de um rendimento mínimo garantido em toda a Europa.

A presença de Pablo Iglésias no trio pode afastar os mais moderados, mas esqueçamos a companhia e foquemo-nos na ideia que faz todo o sentido: os 113 milhões de europeus em risco de pobreza (25 milhões dos quais crianças a viver abaixo do limiar de privação), numa das zonas mais ricas do mundo como a União, são motivo mais do que suficiente para, perante a crise que se anuncia, tentar agir de forma integrada e por antecipação para evitar os erros de exclusão cometidos na última crise.

Em 1996 Portugal foi pioneiro em introduzir uma medida semelhante: o actual RSI é, no fundo, herdeiro do chamado rendimento mínimo garantido. Trata-se, agora, de avançar na mesma linha corrigindo erros. Evitar o desincentivo ao trabalho, indo além de uma prestação que apenas assegura o mínimo de sobrevivência, mas não garante a ninguém, uma vez apanhado, que rompa com a armadilha da pobreza. Um rendimento mínimo que assegure uma vida com dignidade não é necessariamente mau. E vale a pena pensar serenamente nisso, num momento em que a coesão social pode valer em confiança acrescida tudo o que o Orçamento pode gastar eventualmente a mais com o reforço desta prestação social.

No fundo, trata-se de transformar um mínimo de sobrevivência num direito de garantia de uma vida digna, acima do limiar de pobreza a todos os cidadãos, mesmo aos que não contribuíram, por debilidade física, intelectual, ou ausência de formação adequada e não conseguem encontrar trabalho. Parece injusto? Talvez. Mas há aparências que iludem. O ganho de inserção social de uma medida destas, a coesão social que esta garantiria com o fim da exclusão e, sobretudo, o acabar com a dupla penalização das crianças pobres no acesso à escola, ao desporto, à cultura e à integração social, pode valer que se corra o risco do eventual incentivo ao ócio.

Em suma, o conseguir pôr de novo a funcionar um mínimo elevador social pode aconselhar tentar ou pelo menos estudar seriamente a adopção de uma medida do género. Com a liberdade de, Estado a Estado, o poder de fixação do valor ocorrer de acordo com o verdadeiro nível de vida, usos sociais etc… de cada país. Se esta medida fosse contemplada, talvez tivesse valido o sacrifício.

Mário Centeno disse, esta semana à RTP, acreditar que o pico já passou e no final do ano a taxa de desemprego pode não ultrapassar os dez por cento. Mas, a cumprir-se a previsão do FMI, o salto pode ser para 14,5%. Uma catástrofe social que é essencial evitar.

Ontem, os dados do INE sobre o Comércio Internacional são claros em relação às descidas já ocorridas no segundo trimestre, no que se refere ao comércio externo e ainda a crise vai no adro. Aqui permanece uma das grandes dúvidas sobre a possibilidade de uma retoma rápida, a começar no final deste ano. Será possível?

Um país, como Portugal, onde mais de 45% da riqueza depende das exportações (dados de 2019) e em que o sector do turismo, um dos mais atingidos pela crise pode ser duplamente penalizado.

Deste dependiam a restauração, a hotelaria, as agências de viagens, o alojamento local, boa parte dos mercados de luxo e moda, as indústrias culturais, os desportos mais ou menos radicais e um sem número de empregos na construção, desde a reabilitação urbana à dinamização do anterior com a valorização do património e o turismo local, passando pela resposta na habitação ao efeito “vistos gold”. Tudo isso, a começar na própria indústria de aviação, parou e não se sabe quando recomeçará.

Ontem, o comissário da Economia alertava para esta vulnerabilidade acrescida dos países dependentes do turismo e no caso português frisava: “é preciso que sobreviva a este verão”. A questão é saber se vamos conseguir esse pequeno milagre.

Sabem qual a previsão feita, na quarta-feira, pela Organização Mundial de Turismo para o sector este ano? Uma queda da actividade no sector entre 60 a 80%. Ora o sector representava em fevereiro quase 14% do PIB quando, ainda em 2017, se ficava pouco acima dos 9%. Hoje estes números já não fazem parte do quadro de sucesso. São parte de um pesadelo.

Sobretudo, se o ponto de partida for uma dívida superior a 130 este ano. E as ajudas para sair do colapso passarem como esta sexta-feira decidiu o Eurogrupo, essencial e exclusivamente por mais dívida. Como endividando-nos muito mais vamos conseguir fugir ao radar dos mercados e continuar a beneficiar de taxas de juro tão baixas quanto as que conseguimos ainda esta semana?

Centeno mostra-se sereno. Acha que sim. E apetece-nos a todos acreditar com ele. Se funcionarem internamente as medidas já anunciadas (e mesmo que nestes 45 dias já se tenham esfumado 15 mil milhões da riqueza nacional), se a Europa cumprir o prometido, a história não tem de acabar como a crise anterior.

A Comissão Europeia está mandatada para a criação de um Fundo de Reestruturação que, na parte que nos toca, se se transformarem em perto de 4,5 mil milhões basicamente a fundo perdido para apoio a empresas e famílias, pode constituir uma ajuda preciosa. Mas, até agora, não ata nem desata.

O excedente orçamental chegou (via aumento das contribuições sociais) com um ano de avanço. Mas, em seis semanas o país ficou de pernas para o ar. O mundo virou-se do avesso. Tudo parece incerto excepto o medo.

Ou Centeno tem razão ou está, como todos nós, em puro Estado de negação. No caso dele o optimismo pode ter valor económico. Inspirar confiança. O sonho em economia pode auto-realizar-se. Mau é quando nem se consegue sonhar. O nosso ministro das Finanças sonha. A pior crise de todas as nossas vidas não lhe tirou o sono. Isso é bom.

Comentários
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  • César Saraiva
    14 mai, 2020 Maia 13:47
    Tudo muito bem explicado; Exaustivo trabalho; Parabéns e Obrigado! Acho, porém, que antes do pensado "rendimento mínimo para todos", deviam acertar as disparidades que há entre o Salário Mínimo da maioria dos trabalhadores com os dos gestores de certas empresas, os ditos "CEO"!... Sempre que se fala num pequeno aumento do salário mínimo, logo aparecem estes a dizer que a empresa não suporta, etc.etc., mas eles ganham exorbitâncias pagas pela mesma empresa, com aumentos anuais a exceder o salário de sei lá quantos trabalhadores!... Gostava de ver um artigo escrito pela Srª Drª Graça Franco, sobre esta gritante injustiça que chegou ao ponto de um trabalhador não passar da pobreza, por mais que trabalhe 30, 40 ou 50 anos!... É uma vergonha!
  • Pedro Nuno Pimenta B
    11 mai, 2020 Santarém 00:18
    O País fez "boum"! Rebentou. Não é para amanhã. Foi ontem. Fez "boum"! É urgente desconfinar, com todos os riscos, totalmente! Se não se morrer de Covid, vai morrer-se muito mais de miséria. Não se esqueça que viver é sempre um risco e que a morte faz parte da nossa existência. Já a falta de dignidade é que não deveria fazer. Não nos podemos esconder da vida. O País fez "boum".
  • Americo
    09 mai, 2020 Leiria 12:52
    ".......A pior crise de todas as nossas vidas não lhe tirou o sono. Isso é bom........" Bom. Viver no mundo da mentira ? É isso ? Como temos vivido até agora. Com dívida atrás de dívida. Lembro a Sra e outros que o estado ainda não pagou a comparticipação de parte dos projectos 2020, terminados em 2019. As contas do estado de 2019, são uma burla
  • Observador
    09 mai, 2020 Portugal 12:05
    Esse "rendimento mínimo para todos", mesmo para os que nunca contribuíram com um tostão que fosse, esse acréscimo de despesa da Segurança Social, para dar apoio a mandriões que não querem trabalhar e preferem queixar-se a ver o que "escorre" de borla, de onde pensa que virá? Da UE? Não será de um aumento de impostos, pagos por aqueles malucos que ainda trabalham e descontam?