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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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​Armindo venceu a Covid aos cem anos, depois de roubar à morte 65

30 abr, 2020 • Opinião de Graça Franco


Por cá, felizmente, a vida ainda não tem preço (a não ser o óbvio, calculado para todos, e em qualquer idade porque os recursos não são elásticos e o SNS não é um poço sem fundo). Mas isso é compatível com o facto de se respeitar o princípio de que à humanidade não se aplicam limites de duração, após os quais resta o descarte.

Conheço-lhe apenas o nome: Armindo. Assim, sem apelidos, mas Senhor. Senhor que é o mais difícil de ser, ele é. Por isso o tratavam por senhor Armindo no Hospital Curry Cabral de onde saiu, esta terça-feira, depois de ter sobrevivido à Covid-19. Nos hospitais não há salamaleques, nem superlativos, títulos ou diminutivos, é-se simplesmente o que se é.

No mais, conheço-lhe apenas a idade improvável: cem anos feitos a 9 de março. Vi-o, ontem, na TVI. Tinha tido alta hospitalar e estava feliz com o regresso a casa. “Felicíssimo, claro” como fez questão de afirmar.

A equipa que o salvou atendeu-o durante 24 dias consecutivos e, terça-feira, juntou-se à porta da ambulância, na hora da partida, a bater-lhe palmas. Palmas que faziam ricochete sobre aquela dezena de batas, toucas e máscaras. Gente feliz por ter podido dar mais algum tempo de vida ao senhor Armindo.

Os repórteres informavam que embora estivesse feliz ele não era um doente autónomo e apesar de não ter entrado com um quadro de extrema gravidade tinha entre outras maleitas diabetes. Mesmo curado, no domicílio, esperá-lo-ia uma “cuidadora” para o seguir 24 sobre 24 horas. Mesmo assim estava “contentíssimo” talvez por gostar da vida e ter mais uma vez fintado a morte cada vez mais certa.

Eu também fiquei feliz por ele demonstrar que mesmo uma vida de “dependência” total pode ser vivida com aquele gosto e dignidade. Mais contente ainda por ser portuguesa e por as contas do Serviço Nacional de Saúde terem, durante anos a fio, congelado salários, promoções e progressões nas carreiras dos seus trabalhadores, mas nunca terem tentado congelar-lhes os corações de equipas inteiras de médicos, enfermeiros e auxiliares. A pulsar ao som daquelas palmas.

Os seus colegas emigrados nem sempre tiveram a mesma sorte. Nesta crise, um pouco por todo o mundo, ouvi-lhes as queixas por se verem espartilhados por métodos e protocolos que lhes são impostos com regras muito diferentes e muito claras. Sobretudo nos países mais ricos e melhor apetrechados onde os corações não podem aparentemente bater como faziam por cá.

Nesses casos não viveram o stress da falta de ventiladores ou sobrelotação dos cuidados intensivos.

Os “protocolos de ação” são claros e impedem sequer a hipótese de ventilar um paciente de 100 anos. Não se trata de agir em tempos de guerra (mesmo que o inimigo seja um vírus), nem de se colocarem problemas éticos a exigir decisões típicas dos hospitais de campanha como se viveu em Itália ou Estanha. Trata-se de diferenciar doentes em função do estado saúde geral, mas sobretudo da idade. Atribuindo-lhes, logo na primeira triagem, uma espécie de prazo de validade.

Não. Não estou a defender o encarniçamento terapêutico. O excesso de cuidados terapêuticos sejam eles invasivos ou não que prolongam a vida, geralmente em sofrimento só “por prolongar”, que não atende ao bom senso e pretende a todo o custo (e mesmo com custos desproporcionais e incomportáveis, um direito à saúde ilimitada). Isso é imoral.

Sou contra tudo o que é um prolongamento de vida “inútil” e tantas vezes sofredor. Também não defendo a inexistências das linhas de orientação, de boa prática médica, e senso comum que em todo o mundo e também em Portugal fazem com que haja, naturalmente, tratamentos que já nem sequer são propostos a pacientes em função do seu estado geral e da sua idade. Nada disso. O que sim, defendo, é que quando o paciente mesmo centenário (qual Manuel de Oliveira se for conhecido, ou Armindo se o não for) quer ser salvo e tem obviamente hipóteses de o ser não o possa ambicionar apenas ou sobretudo em função da idade. Choca-me que seja esta a ditar-lhe a sentença.

Não tem nada a ver com a necessidade de escolher entre quem se pode salvar se faltam ventiladores ou quem se é forçado a deixar morrer. Mas, acho injusto encaminhar diretamente alguns doentes para os cuidados continuados deixando em descanso eventuais ventiladores livres só porque o tratamento é caro e já “não compensa”.

Não aceito que as questões éticas sejam resolvidas pela ditadura economicista. Porquê gastar milhares para dar mais uns anos de vida com qualidade diminuta a um centenário?

Por cá, felizmente, a vida ainda não tem preço (a não ser o óbvio, calculado para todos, e em qualquer idade porque os recursos não são elásticos e o SNS não é um poço sem fundo). Mas isso é compatível com o facto de se respeitar o princípio de que à humanidade não se aplicam limites de duração, após os quais resta o descarte.

Do senhor Armindo não sei mais nada, mas sei que no Porto, no hospital de S. João, uma senhora a caminho dos 102 anos, matriarca de uma grande família, perfeitamente lúcida, inspiradora para todos os que a conheciam, como eu ou com ela conviveram, e com uma irradiante alegria de viver, esteve em pleno estado de emergência 21 dias nos cuidados intensivos.

Quando passou aos cuidados continuados perdeu a batalha. Partiu como viveu: serena. A história não teve um final feliz mas, mais uma vez, o SNS não lhe impôs uma saída nem pediu uma certidão de nascimento para decidir se valia a pena gastar tempo e dinheiro para salvar uma vida longa mas que tanto queria ser salva.

O Sr. Armindo nasceu, em Portugal, no primeiro ano para o qual há registos de esperança de vida. Nesse longínquo 1920, esta era para os homens ainda inferior a 36 anos. Na Noruega, por exemplo, já nessa altura passava dos 58 anos (mais 23!). Actualmente para os homens, nascidos em Portugal, vai nos 77 e a média nacional para os dois sexos é superior aos 81 anos. Dois anos apenas a menos do que a média dos países mais desenvolvidos.

No último século demos passos de gigante. Face às melhores previsões, feitas à nascença, Armindo já fintou a morte em cerca de 65 anos. Pergunto-me se tivesse nascido norueguês, sueco, ou dinamarquês teria chegado até aqui. Sobrevivido a duas guerras, à gripe espanhola, à febre tifóide, às epidemias de sarampo, à tuberculose, ao SARS, à gripe A, mas sobretudo ao Covid. Bendito SNS, que mesmo descapitalizado lhe permitiu a cura. Duvido que alguma seguradora ainda estivesse interessada na sua apólice.

Dou graças a Deus por ser portuguesa e por António Arnaut o ter criado. Isto não impede que muito provavelmente, no lugar do senhor Armindo, como aqui já escrevi, talvez me sentisse no dever de informar, logo à entrada, o hospital, que era melhor guardarem o ventilador, se necessário, para gente mais nova deixando-me partir sem dor nem medo.

Veria com muito bons olhos, e sem inveja, que tentassem salvar antes os jovens de 80 porque deles era ainda expectável que pudessem dar à sociedade décadas de trabalho e de experiência. Ou se concentrassem nas crianças de 30, ainda com toda uma vida pela frente, ou nos recém-nascidos/ adolescentes com tanto para crescer e aprender. Nos casos relatados, com a pandemia “sob controlo”, mesmo não tendo todos um final feliz, nada disso chegou a ser preciso. Era fantástico que no “pós-confinamento”, e no novo estado de Catástrofe, hoje decretado, continuasse assim. Com Portugal apontado, lá fora, como o “pequeno-milagre”.

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