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Bispo de Pemba faz apelo a Guterres: "Nações Unidas têm obrigação de ajudar" Cabo Delgado

21 abr, 2020 - 16:32 • Susana Madureira Martins

D. Luiz Fernando Lisboa pede ajuda internacional às Nações Unidas, à CPLP e a Portugal, em particular, para travar os ataques de alegados grupos jihadistas na província de Cabo Delgado. Houve já centenas de mortos, mais de 200 mil deslocados, prisões e desaparecimentos de jornalistas.

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O bispo de Pemba, D. Luiz Fernando Lisboa, pede ajuda internacional às Nações Unidas, à CPLP e a Portugal, em particular, para travar os ataques de alegados grupos jihadistas na província de Cabo Delgado, no extremo norte de Moçambique.Houve já centenas de mortos, mais de 200 mil deslocados, prisões e desaparecimentos de jornalistas

A referência do Papa Francisco à "grave crise humanitária" que se vive Cabo Delgado na bênção Urbi et Orbi de Domingo de Páscoa é encarada como natural pelo bispo de Pemba, mas veio colocar mais atenção sobre o que se passa naquela província do norte de Moçambique. Uma situação da qual o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, já disse que só fala “à porta fechada”.

A partir daquele domingo, "houve mais interesse, várias pessoas querem falar e querem entrevistas" sobre os ataques de alegados grupos jihadistas, diz em conversa com a Renascença D. Luiz Fernando, para quem Francisco é "uma figura simbólica muito forte, no mundo actual é o principal líder da actualidade".

Agora, o bispo de Pemba quer outros líderes a colocarem Cabo Delgado no mapa. E mais do que isso: que ajudem a pôr termo, ou pelo menos ajudem a controlar uma situação que "não está controlada".

D. Luiz Fernando Lisboa faz um apelo às Nações Unidas (ONU) e muito em particular ao secretário-geral da organização, o português António Guterres. Sem papas na língua o bispo de Pemba diz mesmo que "com certeza, as Nações Unidas têm obrigação de ajudar".

A partir de Pemba, D. Luiz Fernando lembra a Guterres que "é importante que, sendo português, conhecendo Moçambique como conhece, sabendo da necessidade de Moçambique e da situação que o povo está a passar, que envide todos os esforços possíveis para ajudar, para oferecer ajuda".

Se sabe tem de agir, se não sabe fica a saber e tem de ajudar. É este, no fundo o recado que é deixado ao secretário-geral das Nações Unidas, porque, como diz o bispo de Pemba, "às vezes quando alguém precisa de ajuda pede, e às vezes, não pede e agora, quando o outro percebe que alguém precisa de ajuda ele pode oferecer-se, pode fazer um gesto, ir ao encontro daquele que precisa de ajuda".

Se Guterres já percebeu, o bispo pede-lhe então que "olhe para Moçambique e faça aquilo que puder, para que o povo deixe de sofrer, porque o sofrimento é muito grande". E este apelo à comunidade internacional estende-se também a Portugal "pela ligação que tem a Moçambique tem também uma responsabilidade naquilo que puder ajudar, sobretudo na questão humanitária".

Portugal é chamado à pedra, assim "como outros povos, a CPLP e outros países em geral, podem ajudar a amenizar o sofrimento desse povo", apela o bispo.

Centenas de mortos, 200 mil desalojados e a Covid-19 à espreita

Desde 2017 que aldeias, vilas e, a partir deste ano, as sedes distritais daquela província - Mocímboa da Praia, Quissanga ou Muidumbe - estão a ser atacadas por um ou mais alegados grupos jihadistas, que ali permanecem algumas horas sem qualquer possibilidade de oposição.

No início essas ações limitavam-se a "aldeias escondidas", mas a falta de resposta do exército nacional permitiu que os ataques se façam agora à descarada e de forma violenta.

"Atacam, matam, decepam cabeças", explica o bispo de Pemba, e isso começou a acontecer nas estradas de ligação entre aldeias e cidades, provocando o abandono das vilas, aumentando drasticamente a população das sedes distritais.

D. Luiz Fernando explica que a crise humanitária é perfeitamente vísivel, há "um número absurdo de desalojados, mais de 200 mil fora das aldeias" e depois "há os que ficam nas aldeias, mas dormem no mato com medo dos ataques".

É uma "grave crise humanitária" como referiu o Papa no domingo de Páscoa, porque as pessoas que fogem das aldeias e vão, por exemplo, para Pemba tornam a cidade numa espécie de barril de pólvora em tempo de Covid-19.

D. Luiz Fernando explica que "há famílias em Pemba e noutros lugares que já têm cinco, seis, oito pessoas e acolhem outro número igual nas casas", por isso "é imaginar nesse tempo de Covid 19 como é que as pessoas podem fazer algum tipo de isolamento?", questiona o bispo, acrescentando que "mesmo os que não conseguiram sair e dormem no mato dormem juntos por causa do medo".

Tem sido a Igreja católica, através da Cáritas diocesana e com outras organizações internacionais a dar a resposta que pode para "ajudar a população com roupa, comida, medicamentos e também na reconstrução de casas".

O bispo de Pemba lembra a tempestade perfeita que está criada, porque "há um ano foi o ciclone Kenneth que desalojou muita gente, juntaram-se os ataques, o que criou um número enorme de deslocados e essas precisas precisam de socorro imediato".

Gás natural, rubis e negócios estrangeiros

Cabo Delgado faz parte daquele lote de regiões africanas designadas como um autêntico "escândalo geológico". É uma província de enorme extensão, rica em gás natural, tem uma gigantesca jazida de rubis e há empresas internacionais, francesas, italianas e até portuguesas - como a Galp - aí instaladas, o que torna a situação diplomaticamente delicada e com necessidade de ser tratada com pinças.

Essa delicadeza com que o governo português trata o assunto ficou, de resto, patente há três semanas em plena audição na comissão parlamentar de negócios estrangeiros, quando o ministro Augusto Santos Silva se recusou a responder à porta aberta a uma questão do deputado do PSD, Maló de Abreu, precisamente sobre um recente ataque a uma sede de distrito de Cabo Delgado, Mocímboa da Praia.

À pergunta do deputado se "há portugueses nessa zona?, ou se "a situação está salvaguardada, é preocupante, não é?", o ministro dos Negócios Estrangeiros disse apenas: "Responderei a todas as questões, menos à questão que o senhor deputado Maló de Abreu colocou sobre a situação em Mocímboa da Praia", referindo ter "todo o gosto em responder como é obrigação, mas à porta fechada".

E sim, é sabido que há portugueses a trabalhar na província de Cabo Delgado, com o ministro dos Negócios Estrangeiros a querer assim preservar essa comunidade perante o cenário instável que se vive na zona.

Jiahdistas, Estado islâmico ou grupos desorganizados?

Quem são os autores das atrocidades na região norte de Cabo Delgado? Quem os patrocina? Quais são os verdadeiros interesses? São perguntas para o tão famoso milhão de dólares. Ninguém sabe ao certo.

Retomando a conversa com o bispo de Pemba, o certo é que "há um patrocínio por trás, alguém está por trás disto", mas não se sabe quem. As atrocidades atingiram o exército regular de Moçambique, "roubaram armas e uniformes, carros, alimentos".

Se se trata de um grupo islâmico ou não, há muitas duvidas. D. Luiz Fernando clarifica que "só nos ultimos ataques se têm auto-denominado Estado islâmico", é por isso incerto se são mesmo "ou se estão a aproveitar-se de um nome grande e forte com muita experiência para dar força a esse grupo".

A comunidade muçulmana tem-se afastado permanentemente destes ataques, "desde o início as lideranças muçulmanas disseram que não têm nada a ver com eles, com o Islão, porque o Islão prega a misericórdia e a paz", explica o bispo.

Há menos de uma semana os líderes muçulmanos no território lançaram um documento precisamente para se desmarcarem de um grupo que já proclamou a intenção de ali instalar um califado.

O governo de Moçambique, entretanto, faz o que pode. Percebendo que o exército nacional não conseguia dar conta da situação, o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, terá mandado contratar empresas privadas, vulgarmente conhecidos como mercenários.

O bispo de Pemba confirma essa estratégia de Maputo explicando que "já veio um grupo russo, alguns deles foram mortos" e que "agora fala-se de um grupo da África do Sul que também vieram com quatro avionetas e um desses aviões foi abatido".

A vontade é boa, admite D. Luiz Fernando, mas não chega, "não conseguiram estancar essa verdadeira tragédia", reforçando a necessidade de "ajuda externa".

O bispo de Pemba é dos poucos que denunciam a situação, mas também não acha que "a Igreja está sozinha". O problema é que em Cabo Delgado "há uma lei do silêncio, não se pode falar muito, alguns jornalistas já foram presos". Um deles, de resto está desaparecido há uma semana, Ibrahim Abou Baruko, jornalista que trabalha numa rádio comunitária.

Perante uma lei da rolha, D.Luiz Fernando explica que se recusa a ficar calado, porque "é uma região e um povo muito pobre e o pouco que tem está a ser queimado, saqueado e a ser deixado para trás por medo".

Questionado se tem medo ou se se sente sozinho nesta denúncia, o bispo de Pemba responde que não, que "há muita gente preocupada, mas também com medo" e que "muitas vezes" a Igreja empresta a "voz porque o povo não consegue falar, tem medo ou não tem oportunidade".

Tem sido importante falar sem "achar culpados, não é esse o objectivo, o objectivo não é prejudicar o governo ou criticar, não é nada disso, é buscar uma solução para este conflito", admitindo que "é uma grande injustiça o que tem acontecido", acrescentando que "o próprio Papa Francisco falou" e que "a verdade nem sempre agrada ouvir", mas não é possível esse "afastar da verdade".

Questionado sobre se ele próprio tem medo com os ataques quase à porta de casa, este bispo brasileiro responde que está "consciente dos riscos" que corre e que "todos na província correm riscos, sobretudo os que falam", mas "medo" diz que não tem. D. Luiz confia "que apareçam mais pessoas que tenham a coragem de falar, que sejam solidárias para ajudar aqueles que mais precisam".

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