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Coronavírus

Paula passou 14 dias seguidos a trabalhar num lar de idosos. “Estive a tratar de uma doente com Covid sem saber, e ela morreu”

14 abr, 2020 - 06:50 • João Carlos Malta

A funcionária de 50 anos trabalha num lar que acomoda 62 idosos. Considera que a estratégia da instituição para a qual trabalha em Gaia é, até agora, um caso de sucesso. É verdade que morreu uma mulher na casa dos 90 anos, mas as medidas tomadas evitaram a repetição de tragédias que ocorreram em outos lares de idosos de Portugal. O relato de uma mulher que passou uma “quarentena profissional”.

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A mulher na casa de 90 anos tinha problemas respiratórios, e era uma das utentes de um lar de idosos do Candal, em Vila Nova de Gaia, de quem Paula tinha estado a tratar na noite anterior. Na manhã seguinte, a idosa deu entrada no hospital e, dois dias depois, quando ficaram a saber que tinha sido diagnosticada com Covid-19, esta funcionária de 50 anos − e as outras nove colegas que tinham estado com em contato com a idosa − ficaram desorientadas. “Levou ao pânico entre nós. Bastou acontecer uma vez, e todas ficámos com medo”, conta à Renascença.

O caso não era para menos, segundo revela Paula Mendes. O primeiro pensamento foi o de impotência. “Estive a tratar de uma doente com Covid sem saber, e ela morreu”.

A morte aconteceu a 31 de março, no Hospital Santos Silva, cinco dias depois de ela e mais 21 colegas de profissão entrarem num período de 14 dias seguidos de trabalho, adotado pelo presidente da Direção do Centro Social e Paroquial Padre Alves Correia, como forma de prevenção da disseminação do novo coronavírus.

Este é o único óbito a registar, até agora, naquele lar devido ao Covid-19, apesar de na instituição de Vila Nova de Gaia, durante este período, terem já morrido mais dois utentes em resultado de outras patologias.

Os lares de idosos são espaços que a DGS considera que se “encontram numa situação de risco acrescido de maior disseminação da infeção”.

Paula, que trabalha naquela instituição do Norte do país há oito anos, recorda que a vítima mortal tinha problemas respiratórios, e que a utente não apanhou o vírus no lar, mas sim no hospital.

“Ela foi para o hospital Santos Silva [em Vila Nova de Gaia], depois regressou, e foi isolada numa enfermaria. Nessa altura, foi por precaução. Tornou a ir àquela unidade de saúde, e, nessa altura, detetaram que tinha Covid-19. Acabou por morrer a semana passada”, relembra.

Foram realizados testes às 10 trabalhadoras (ajudantes de ação direta) da equipa das 21 que estavam a trabalhar, e os elementos desse grupo tiveram todas resultados negativo. No entanto, não foi feito nenhum teste às outras 11, nem aos utentes.

A morte não foi o único gatilho, mas foi determinante, para um reforço ainda mais rigoroso das regras sanitárias neste lar de idosos. Se antes, segundo conta a trabalhadora de 50 anos, as luvas e os aventais, já eram regra, o evoluir da curva de casos em Portugal e noutros lares, tornou a máscara fundamental.

14 dias non-stop

Ainda assim, e para evitar mais dissabores, a gestão daquele lar decidiu mudar a metodologia de funcionamento. A decisão foi a de um grupo de funcionárias ficar logo de quarentena no trabalho.

"[O gerente] percebeu que não dava resultado, porque íamos trabalhar com os idosos e vínhamos para casa, e voltávamos a ir, e, entretanto, íamos às compras ou a outro lado qualquer e a possibilidade de contágio era maior"

“Já não viemos mais a casa. Foram 14 dias, 21 funcionárias”, afirma Paula Mendes, que terminou as duas semanas de trabalho na passada quinta-feira. A ideia era evitar que quem ali trabalhasse pudesse andar entre casa e o trabalho, e mitigar assim “qualquer tipo de vírus e de contágio”. “Foi a melhor medida que se tomou”, defende.

Mas ao início nem todos ficaram felizes. “Algumas [colegas] começaram a chorar, e a pensar nas suas vidas”, explica. “Mas depois encarámos muito bem e fomos muito unidas”, valoriza. Agora acha que caso não fossem tomadas estas medidas sem precedentes no Lar Padre Alves Correia, “não teríamos só um caso”.

A ideia inicial do presidente da direção do lar até era de criar turnos de 12 horas − das 8h00 às 20h00. “Mas ele percebeu que não dava resultado, porque íamos trabalhar com os idosos e vínhamos para casa, e voltávamos a ir, e, entretanto, íamos às compras ou a outro lado qualquer e a possibilidade de contágio era maior”, considera.

Duas semanas fora de casa não são fáceis de ultrapassar. A vida familiar teve de ser repensada. “Obrigou a que nos organizássemos, eu tenho um companheiro e um filho. Íamos falando todos os dias, mas claro que custa. Agora vou estar 15 dias em casa”, concretiza.

Quando Paula e as outras 20 funcionárias saíram, entrou ao serviço outro grupo. Quando regressar ao trabalho já será noutros moldes. “Vamos voltar, mas não tantos dias. Possivelmente, vamos estar lá quatro dias a laborar e três em casa”, explica, acrescentando que o patrão entendeu que era excessivo doravante estar tantos dias fora de casa.

Não mudar de andar e refeições nos quartos

O prolongar das jornadas de trabalho e a rotação de equipas, não foram o único método usado por este lar de idosos para controlar a pandemia. Paula conta que “se antes já tínhamos cuidado, agora é a dobrar”.

“Tratamos de um idoso, mudamos de luvas e lavamos as mãos. Sucessivamente”, relata.

Houve ainda mais mudanças substanciais na organização do espaço e do trabalho. “Tudo foi organizado de forma diferente”, começa por dizer. Os idosos passaram a fazer as refeições nos quartos, e não podiam sair sequer para o corredor.

"Tratamos de um idoso, mudamos de luvas e lavamos as mãos. Sucessivamente"

As medidas superam até o que é aconselhado pela DGS que pede que os espaços de refeição em equipamentos dedicados a idosos devem ser reorganizados para garantir que os utentes não se sentam frente a frente e que não se podem utilizar objetos de uso comum como cestos de pão ou de fruta e jarros de água.

Já as funcionárias não podem passar de um andar para o outro – o lar tem três­ − para evitar o contágio. O refeitório encerrou e as mesas do refeição passaram para dentro dos quartos dos idosos. Naquele lar há quartos com três camas e suites.

O local onde até aí eram servidas as refeições em grupo, transformou-se num dormitório onde passaram a dormir as 21 funcionárias de serviço. Foram comprados colchões e estrados, e as camas foram distribuídas por aquele espaço respeitando a distância de segurança. “Deram-nos todas as condições para lá ficar durante duas semanas”, considera Paula.

Toda esta situação tem também um impacto na comunidade de idosos daquele lar. “Estavam já apreensivos de estar ali tão fechados, de nem sequer poder vir ao corredor e ao refeitório”, explicita.

Segundo Paula, alguns apercebem-se através das notícias na televisão “que esta é a melhor maneira”. “E eles também veem que mesmo nós estávamos ali sem ir a nossa família. Estávamos ali para eles, abdicávamos de estar em casa”, avança.

Caso de sucesso... até agora

A falta de pessoas para trabalhar nos lares levou o Governo a criar uma plataforma de três mil voluntários para alargar a base de apoio aos idosos. Paula apoia a ideia, e revela que no local em que trabalha já recrutou cinco nessas circunstâncias.

Ainda assim alerta que, nesta área, às vezes as pessoas “não têm noção para aquilo que vão”. “Se for alguém que tenha algum conhecimento em geriatria, já sabe ao que vai. Mas se for alguém que venha de uma creche, é muito diferente. Quando chegam percebem que o trabalho é mais duro do que parece”, afiança.

Esta trabalhadora faz um balanço positivo do trabalho feito até ao momento, e que evitou grandes tragédias como se tem visto em lares no Norte e Centro do país. “Não posso dizer que somos um caso de sucesso, porque não sei se haverá no futuro mais algum infetado. Mas acho que tomámos as medidas corretas. Custa estar longe da família, dormir lá, e é um excesso de trabalho maior. Mas era a melhor medida que podemos tomar”, repete.

Questionada se sente medo ao ir para o lar, Paula responde de forma pragmática e humanística. “Temos que trabalhar. Tem que ser. Pelos idosos também, porque as famílias não os podem levar”, remata.

(a reportagem foi corrigida com um conjunto de alterações a 15/04)

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