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Portugal vai ter “arquivo de paisagens sonoras” à escala europeia

17 dez, 2019 - 15:40 • Rosário Silva

O projeto chama-se “Sonotomia” e pretende registar, estudar e potenciar a herança sonora europeia. Foi recentemente aprovado pela União Europeia, no âmbito do programa Europa Criativa.

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Criar memória futura e partilhar o Alentejo são dois grandes objetivos do projeto “Sonotomia”.

Liderada por Portugal, a que se juntam a Hungria e Espanha, a iniciativa é coordenada pela Associação Pedra Angular e pelo Festival Terras sem Sombra, um evento da sociedade civil, que se realiza todos os anos com a finalidade de internacionalizar o Alentejo através do património, da música e da conservação da natureza.

As paisagens sonoras europeias podem ser divididas em três grupos: de carácter rural, costeiras e fluviais e, finalmente, urbanas.

A Renascença conversou com um dos impulsionadores da iniciativa, o historiador e investigador José António Falcão.



O projeto Sonotomia, da União Europeia, teve o seu arranque no Alentejo, a partir do concelho de Odemira. Importa, em primeiro lugar, perceber que projeto é este.

Este projeto é uma iniciativa que corresponde ao Programa Europa Criativa, promovido pela União Europeia, em 2019. É, aliás, a única candidatura que tem a liderança do nosso país, sendo também o resultado de uma renhida disputa entre centenas de projetos de toda a Europa.

Resulta da conjugação de esforços entre Portugal, Hungria e Espanha e visa retratar de uma maneira aprofundada, e que possa constituir não apenas um arquivo, mas também um elemento de dinamização e de atração para que os artistas o conheçam melhor, o magnífico património sonoro da Europa, particularmente as paisagens sonoras deste velho continente que assumem três caraterísticas bem marcadas. Por um lado, as paisagens de carácter rural, depois as costeiras e fluviais e, finalmente, as urbanas.

E, qual o significado ou o simbolismo de “Sonotomia”, a designação do projeto?

Este nome foi muito criteriosamente escolhido. Demorámos alguns meses, com os nossos parceiros, a chegar a este resultado. É uma espécie de acrónimo de “soundscape”. É um neologismo e nós talvez pudéssemos traduzir na nossa língua, como “paisagens sonoras”.

Ora, o conceito de paisagem faz parte do nosso habitat e, de certo modo, religa-nos também a um quotidiano. Um quotidiano que não é, necessariamente edílico, enfim, rural, ou até mais agitado se pensarmos no curso absolutamente infinito dos nossos rios e do próprio oceano Atlântico. Mas também nos remete para vivências urbanas.

De certeza que o ouvinte, o espectador, o interessado por estes assuntos, daqui a algum tempo, quando compulsar este arquivo que vamos divulgar, este é um projeto que tem a duração de dois anos e meio, certamente que essa pessoa vai encontrar sons com os quais se identifica e vai reconhecer, também, uma identidade sonora europeia.

Os trabalhos iniciaram-se na orla marítima de Odemira onde, de resto, decorreu uma primeira reunião das estruturas do Sonotomia…

Sim, o Alentejo é o território escolhido, precisamente, para se fazer o registo de tudo o que diz respeito à orla marítima e também aos rios. Vamos conceder uma grande atenção à costa alentejana, mas também a cursos fluviais e bacias hidrográficas do rio Mira, do rio Sado, do rio Guadiana, do rio Caia, na medida em que se pretende fazer um corpus de sons que possa, depois, servir de inspiração a músicos, a artistas plásticos, a designers, a cineastas, enfim, a todo o conjunto de profissões criativas.

E, claro, ao mesmo tempo, procurar caracterizar aquilo que é a identidade europeia através dos seus sons. Existe, também, aqui um património imaterial que é de extrema importância e que importa conservar. Este é o repto da União Europeia. Este trabalho vai ser feito também pela Hungria, no que diz respeito ao âmbito propriamente urbano, e depois igualmente pela vizinha Espanha no que diz respeito às paisagens rurais.

Tendo em conta que se perspetivam alterações na fisionomia da costa sudoeste, a ideia de se criar um arquivo sonoro prende-se também com o conceber uma espécie de memória futura?

É uma grande preocupação deste projeto criar uma memória futura. Ou seja, conseguirmos de algum modo registar aquilo de que somos testemunhas no nosso tempo. As alterações climáticas, o facto de haver uma industrialização crescente em determinados sectores, a ampliação do porto de Sines, por outro lado, também, o desenvolvimento do turismo e de outras atividades que têm importantes repercussões no território, tudo isto vai mudar a fisionomia da costa alentejana.

Nalguns aspetos, valorizando-a, noutros casos, podendo levar ao desaparecimento ou pelo menos a uma profunda transformação de alguns aspetos que hoje conhecemos como assumidamente típicos. A nossa preocupação é, então, criar um caso de estudo, um arquivo sonoro, mas ao mesmo tempo, também, uma espécie de grande álbum que as gerações futuras possam folhear, conhecer e encontrar inspiração para a vivência dos próprios tempos.

Esta iniciativa, liderada por Portugal, é coordenada pela associação Pedra Angular e pelo Festival Terras sem Sombra, que todos conhecemos muito bem. Aliás, a internacionalização do Alentejo como destino de arte e natureza tem sido uma vossa preocupação. O Sonotomia segue também esse propósito?

Sim, há uma grande preocupação da nossa parte no sentido de partilhar o Alentejo. Internacionalizá-lo, torná-lo conhecido, a começar pelas pessoas que vivem no nosso país, mas também todos os outros. Realmente, tudo na região alentejana propícia isto. Somos, claramente, um destino importante do ponto de vista da arte e da cultura, mas este património precisa de falar, precisa de iniciativas que o tornem mais acessível e, inclusivamente, despertem uma atenção a um nível global. Este é, de alguma forma, o papel que tem vindo a ser desempenhado pelo Terras sem Sombra.

Há, depois, uma dimensão de que talvez nem todos estejamos conscientes que é a verdadeira magnitude do património natural e especialmente do património biodiverso. Os recursos naturais do Alentejo são de uma riqueza extraordinária e é uma grande responsabilidade conseguir conservá-los, estudá-los e transmiti-los para um futuro, não só próximo, mas também para todas as pessoas que, mais adiante, possam conhecer esta riqueza. Infelizmente, muito de nós ignoramo-la e, portanto, há que fazer aqui um esforço de conhecimento. O património sonoro tem um importantíssimo papel a desempenhar e nós queremos ajudar a conservá-lo tendo em vista estas preocupações que nos assolam.

Depois do primeiro encontro, em Odemira, que contou com a presença de alguns peritos, o que se vai seguir?

As próximas fases do projeto passam pela realização de residências artísticas, técnicas e científicas em pontos muito específicos e concretos, e visam ensinar a metodologia que pretendemos generalizar. É uma metodologia que tem vindo a ser muito apurada pelos nossos parceiros húngaros e pelas colaborações e parcerias que eles próprios desenvolvem com países como a Alemanha ou a Holanda, e conseguir criar um método de trabalho que possa ser útil a outros e seja alvo de réplica.

Esta é uma preocupação que nos assiste, ou seja, podermos ter o Alentejo como palco de boas práticas que depois são úteis noutros territórios, dentro e fora do país. Isto logo, digamos, no momento imediato. Depois, numa segunda fase, vai ser lançado o repto a um conjunto de criadores para que encontrem um fio condutor para a sua inspiração e lhes permita criar obras que pretendemos apresentar, por exemplo, no Festival Terras sem Sombra, mas também noutros palcos, noutros festivais dispersos pela geografia europeia.

Pretendemos, também, fazer chegar este trabalho às escolas de música, aos conservatórios e às universidades.

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