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Entrevista Renascença/Ecclesia

“A salvação do planeta é bandeira das religiões”, diz Isabel Varanda

06 dez, 2019 - 11:46 • José Pedro Frazão (Renascença) e Paulo Rocha (Agência Ecclesia)

A teóloga e investigadora na área de ecologia considera que o Papa devia escrever um segundo volume do “Laudato Si’”, devido à rapidez dos desenvolvimentos.

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Isabel Varanda é doutorada em Teologia, professora associada da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, onde acompanha, há vários anos, a área da ecologia. É uma das responsáveis por um projeto de investigação relacionado com a problemática ecológica em curso no CITER – o Centro de Investigação em Teologia e Ciências da Religião da Faculdade de Teologia.

Na entrevista semanal Renascença/Ecclesia, a investigadora considera a ecologia um “território educativo de intervenção prioritária”, reafirma a “emergência climática” diante da qual não bastam “discursos pontuais” ou manifestações de “angústia”, mas a ação de todos. Para Isabel Varanda, Greta Thunberg “é um símbolo” que motiva a comunidade em geral e o Papa Francisco deveria escrever a “Laudato Si’ 2’”, após quatro anos do primeiro documento, porque “há desenvolvimentos a tal velocidade que já justificaria uma outra encíclica”.

Uma entrevista no contexto da COP 25 e da investigação desenvolvida pelo grupo “Religião, Ecologia e Cidadania”, que integra professores da UCP e de outras universidades de vários pontos do mundo e tem em curso o projeto de investigação “Amar e cuidar a terra: critérios e processos de ecologia integral”, que tem como objetivo a constituição de um Observatório Permanente para as Questões Ecológicas.

Decorre em Madrid a Cimeira do Clima. Está a acompanhar a conferência, atenta aos trabalhos que estão a decorrer?

Claro que é algo que está a acontecer e nós temos o privilégio, com a colaboração dos media, de ir acompanhando os trabalhos. É obvio que, nesse contexto de uma cimeira, as temáticas são muito específicas e há também uma preocupação de dar um sinal ao mundo e a todas as nações de uma emergência climática declarada. Contrapondo com um conceito que temos na área da educação, os TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária), também a questão ecológica se revela um território educativo de intervenção prioritária.

Nesse sentido, a COP 25 que se realiza em Madrid é um sinal para o mundo. Não sabemos quais serão as conclusões, mas o objetivo está cumprido: um alerta e despertar emergente, e não progressivo, das consciências para a grande questão ecológica que ensombra a vida do planeta e dos seres humanos.

Entendo esta COP 25 como mais um evento que se acrescenta a estes focos de preocupação crescente que atravessam o planeta e progressivamente vão chegando à consciência individual de cada um como um território educativo de intervenção prioritária. E já não é só um território educativo, porque há algo que se perceciona como uma emergência climática. E uma emergência remete-nos para o que o Papa Francisco exprimia em termos de uma revolução cultural, na encíclica “Laudato Sí”.

Uma revolução é algo que tem de acontecer no imediato, que marca o tempo e a realidade com uma certa radicalidade. E é necessário que tomemos consciência dessa emergência, com bastante sofrimento e preocupação, porque são tempo de algum modo traumáticos os que atravessamos! Há situações traumatizantes de populações e regiões do nosso planeta, em profundo sofrimento devido às alterações climáticas.

Lembro uma expressão do Papa Francisco, em que diz: “não vos quero poupar ao traumatismo do encontro com as dores do mundo”. Acho esta frase extraordinária! De facto, alguns filósofos, como Júlia Kristeva, diz que “o cristianismo é uma religião muito longe das cruzes do mundo”. É um paradoxo brutal: o cristianismo, que se funda no mistério cruz, está demasiado longe das cruzes do mundo. E o Papa Francisco diz: “não vos quero poupar ao traumatismo do encontro”. Depois, descreve as dores do mundo e diz, numa homilia: “irmãos, a humanidade já não sabe chorar, mas chegou a hora do pranto”. E ele mesmo diz: “chorai comigo, irmãos”.

Este não é um novo posicionamento numa questão antiga, que se repete. Há uma emergência. Há um modo novo, que a COP 25 também indicia: temos de hoje mesmo de tomar em mãos esta problemática, porque amanhã é, de facto, tarde.

Há uma discrepância na forma como é enfrentada essa emergência, com cristãos mais despertos nalgumas regiões, que agora tem uma dimensão global com esta encíclica. Os cristãos estão verdadeiramente mobilizados para essa emergência?

A questão evoca um discurso do Papa Paulo VI na ONU, no dia 4 de outubro de 1965, em que dizia o seguinte: “eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum”.

Claro que era um contexto diferente, saíamos de duas guerras mundiais, e o contexto mudou radicalmente. Mas a premência é a de hoje: eis chegada a hora em que se impõe uma pausa para pensarmos de novo a nossa origem comum, a nossa história e o nosso destino comum.

A encíclica “Laudato Sí’” foi publicada em 2015 e, um anos depois, a Agência Ecclesia pediu-me um apontamento, que poderão recuperar, em que se fazia uma leitura sobre um ano passado sobre a encíclica. Evocando a “Laudato Sí’”, falava em “louvor, mas sem convicção”. E terei necessariamente de dizer que não sinto, até este momento, que tenhamos, ao nível da comunidade portuguesa, da Igreja Católica em Portugal e da Conferência Episcopal Portuguesa, percebido aquilo que se nos impõe no momento.

Precisamos de traçar estratégias objetivas bem definidas, de interceção com as diferentes áreas do saber, os diferentes movimentos que se vão levantando ao nível das comunidades, das instâncias educativas e da sociedade em geral. Não chega assumir a questão em discursos pontuais, conferências, breves alocuções, que são certamente benfazejas, mas que não produzem o impacto da comunhão, do concerto de esforços e da modernidade na abordagem da questão. Uma modernidade pertinente, atual, consciente, correndo riscos inclusivamente porque é uma aventura para a qual todos fomos convocados, para dar o nosso contributo para salvar o mundo. E a palavra salvação faz parte do léxico das religiões em geral e de um modo concreto do cristianismo. Portanto, a salvação do planeta, a salvação da humanidade e a salvação criação é bandeira das religiões! E é bandeira concretamente do cristianismo.

Não se percebeu na comunidade eclesial que o tempo é de agir, como se repete na COP 25?

Penso que sim...

Mas ainda não se agiu...

Ainda não se agiu. Desenvolve-se, sim, uma angústia diante daquilo que nos é chamado, no imediato, a intervir, nos campos em que somos chamados individualmente a intervir, sentindo-nos de algum modo com poucos recursos, não nos sentindo capacitados para tal, porque nos sentimos isolados na nossa intervenção, na nossa palavra local, que tem pouco alcance, que não é ouvida ou não entra nos cânones habituais da comunicação e deixa o cidadão comum e o crente entregue a si mesmo.

Voltemos à “Laudato Sí’”: que instrumento é este? Convergem neste documento as agendas mundiais, as ações que é necessário levar por diante, o segredo para enfrentar o problema da emergência climática?

Sim e não... Sim, porque reconhecemos que a encíclica “Laudato Sí’” é um marco incontornável, acompanhou e estava em sintonia completa com as agendas do planeta. Mas temos de ter presente que passaram quatro anos. E, nestes quatro anos, todos nos damos conta da velocidade tremenda que nos deixa com sentimentos de desproteção e de não preparação para esta emergência climática declarada, para a urgência climática que não se contempla com processos de mudança de mentalidade.

A encíclica tem todo o valor como uma referência incontornável que contribuiu para o despertar das consciências mundiais e da sensibilidade dos católicos, embora tardiamente (mas isso está tudo dito e não precisamos de o voltar a dizer). Ousaria dizer que talvez o Papa Francisco esteja a pensar – e espero que esteja a pensar – numa segunda edição da “Laudato Sí’”, na “Laudato Sí’ 2”. Porque, em quatro anos, há desenvolvimentos a tal velocidade que já justificaria uma outra encíclica.

Mas podemos olhar de outra forma: talvez a encíclica esteja totalmente por cumprir... A sua validade é tão grande que, mais do que fazer um segundo documento em cima do que ainda está por cumprir, talvez fosse mais interessante ir ao plano inicial, insistir no cumprimento de algumas mensagens. Porque a mensagem da encíclica é abrangente, interdisciplinar. E isso introduz-me numa outra questão: tem a ver com a mobilização atual e o debate que temos nesta matéria. Tirando o Papa Francisco, a única pessoa que associamos a esta causa é uma criança, uma adolescente! E muitas vezes é acusada de um discurso simplista em relação a esta matéria, ao contrário da forma como foi recebida a encíclica, muito elogiada por todos os académicos e especialistas, por ser bastante completa e muito bem baseada em todas as áreas, da física à economia, passando naturalmente pela ética. Não é possível cumprir mais os alertas do Papa Francisco, que estão na encíclica? Estou a pensar, por exemplo, na dimensão económica que está contida naquele documento...

A nossa palavra é sempre de saudação deste imenso contributo da encíclica, que continua a ter uma validade e uma pertinência inegociável no contexto atual. Mas há o que chamamos o processo de receção, que está a indiciar e muito bem.

O processo de receção da encíclica vai-nos acompanhar progressivamente e ocorre no tempo. Ao mesmo tempo – tanto é que tivemos à pouco o sínodo pan-amazónico e temos constantemente nas mensagens para o Dia Mundial da Paz ou aos intelectuais, artistas ou à Academia das Ciências – o magistério da Igreja, e concretamente o Papa Francisco, sente necessidade de insistir, de voltar à problemática e trazer à luz novamente a encíclica “Laudato Sí’”, na sua abrangência extraordinária e nas suas interceções múltiplas e nos seus destinatários, porque se destina para o mundo todo.

Uma coisa é a receção da encíclica, outra a velocidade espantosa com que somos confrontados nas declarações que nos vêm das diferentes áreas do saber e os contantes alertas da ONU para uma emergência. E a emergência é hoje! E também o Papa diz isso mesmo na encíclica: é hoje que temos de atuar. E depois traça um painel alargado para a compreensão e a sistematização de uma ação concreta a partir de hoje e no futuro.

Pelo caminho vão surgindo e vão-se levantando inesperadamente movimentos ou pessoas singulares. A Greta é uma menina, uma adolescente, é um símbolo e é mais do que aquilo que ela diz: é toda a linguagem simbólica que transparece e mobiliza. O que se retira desta figura, emblemática, é o que representa, mais do que aquilo que ela diz: a pessoa, saída do meio de uma serra ou de um glaciar, pela sua postura, convicção e coragem motiva a comunidade em geral para uma ação que tem de ser fundamentada.

Eu não estou ainda muito convencida de que tenhamos a perceção do background, do que está por trás. E aí as religiões, juntamente com as outras ciências, poderiam ter um papel fundamental em fornecer os pilares teóricos que fundamentam o nosso agir. Caso contrário, podemos cair na defesa de um ambientalismo... Por vezes digo informalmente: temos partidos políticos que cuidam das questões ambientais – que se preocupam, pelo menos. Temos movimentos cívicos que se preocupam com as problemáticas ambientais, temos organismos internacionais também preocupados com o ambiente, as igrejas e as religiões também preocupadas com o ambiente. E é esse o nosso papel, certamente! Mas a minha questão vai mais longe: qual é a especificidade do contributo das religiões para esta problemática? E aí há um trabalho ad intra que carece de ser feito, ao nível primeiro do diálogo inter-religioso e depois no seio de cada uma das religiões, das religiões monoteístas, as grandes religiões do mundo. E concretamente no seio do cristianismo: qual é a palavra, a ação pertinente da religião nesta problemática que põe em risco a vida e a sobrevida de todas as criaturas na terra.

É nesse contributo que se situa o CITER, o Centro de Investigação em Teologia e Ciências da Religião, da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Pedia-lhe que nos adiantasse a investigação em curso, a que está perspetivada sobre este tema. Por aquilo de que nos vamos apercebendo, em causa poderão estar não só alterações comportamentais, mas sim o “background” de toda a problemática, olhando para uma nova era geológica. Há uma perspetiva nova que é necessário introduzir, percebendo de que forma o humano está a transformar a Terra?

O CITER tem várias linhas de investigação e, numa delas, está em curso um projeto de investigação, depois de constituído um grupo de investigação interdisciplinar, que apelidamos de “Grupo REC” (Religião, Ecologia e Cidadania), focalizando a sua investigação na área das problemáticas ecológicas. No seio deste grupo de investigação, está em curso o projeto cujo tema de investigação é “Amar e cuidar a Terra: critérios e processos de ecologia integral”. Há aqui uma provocação nestes dois verbos: “amar e cuidar a Terra”. Não é habitual que pensemos a Terra como algo a cuidar, mas com amor. Amar o mundo é, de algum modo, uma descoberta para algumas religiões.

Sabemos que ao longo dos séculos, quase até ao Concílio Vaticano II, o cristianismo viveu algum equívoco ou ambiguidade entre, por um lado, o amor ao mundo e, por outro lado, a fuga do mundo. Diríamos, com alguns laivos gnósticos: por um lado, o mundo é bom, criatura de Deus, mas, por outro lado, o mundo tem uma negatividade. No Concílio Vaticano II, na grande primavera para a Igreja, com a “Gaudium et Spes”, é reconhecido o valor de todas as criaturas, não só da criatura humana, mas o valor das realidades terrestres. E creio que temos no Vaticano II o grande pilar e impulso para a sintonia da Igreja e dos cristãos como mundo, embora assim estivéssemos deste a encarnação.

Acerca da nova era que a geologia identifica, a era do antropoceno, num conceito forjado por Paul Crutzen no ano 2000, pretende significar o tempo contemporâneo formulado deste modo: as alterações antropogénicas, que o ser humano provoca no planeta Terra já tem um carácter de tal modo irreversível que provocam alterações irreversíveis no próprio planeta. Daí que há um consenso na geologia e nas ciências ligadas à biologia e à geologia na identificação de uma nova era geológica, chamada antropoceno, embora haja ainda falta de consenso na identificação da data em que entrámos nessa nova era.

Há alterações objetivas, antropogénicas, irreversíveis e isso é o sinal de alerta gravíssimo! Basta pensar que o dia 29 de julho é o “earth overshoot day”, o dia a partir do qual estamos a comer a Terra, literalmente. Porque desde esse dia a Terra deixou de ter capacidade de repor o que nós consumimos. E, portanto, estamos literalmente a comer a terra e a provocar alterações irreversíveis no planeta.

Um dos pontos concretos do CITER tem a ver com um Observatório Permanente de Ecologia Integral. Já foi criado ou em que ponto está e qual vai ser resultado palpável deste observatório?

No descritivo do projeto “Amar e cuidar a Terra: critérios e processos de ecologia integral”, o observatório aparece como um dos resultados que pretendemos obter. Na finalização do projeto visamos, como objetivo, a elaboração de um Observatório Permanente para as Questões Ecológicas. Neste momento está desenhado como objetivo para a conclusão do projeto.

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