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Entrevista Renascença/Ecclesia

Presidente da CNIS. "Vou exigir que haja uma compensação para atualização do salário mínimo"

22 nov, 2019 - 07:00 • Ângela Roque (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)

Colaboração com o Estado é “irreversível”, considera o presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS). O padre Lino Maia está confiante no diálogo com o novo executivo, mas preocupado com a “sustentabilidade” do setor. E avisa: a atualização do salário mínimo exige a revisão das tabelas de apoio.

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Entrevista Renascença/Ecclesia ao padre Lino Maia da CNIS, 22/11/2019
Clique na imagem para ouvir a entrevista na íntegra. Foto: Manuel Costa/Ecclesia

Com 40% das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) a apresentarem “resultados negativos”, o padre Lino Maia diz que a sustentabilidade é o “grande desafio” e o maior problema que enfrentam. Sustentabilidade financeira, mas também política, tendo em conta que nem todos os partidos reconhecem o papel e importância destas instituições.

O presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) confia que as relações com o Governo e a nova titular da pasta do Trabalho “serão boas”, e que as parcerias e protocolos com o Estado vão manter-se, porque são fundamentais para o país. Mas acha que se poupava tempo e trabalho se houvesse “um Ministério de Assuntos Sociais”.

Na véspera da assembleia-geral da CNIS, que vai analisar o programa de ação para 2020, Lino Maia alerta para o impacto que o aumento do salário mínimo vai ter nas instituições, onde 60% das despesas são custos com pessoal. E critica o “zelotismo” e a “quase perseguição” com que o Instituto de Segurança Social inspeciona as instituições.

Na mensagem que escreveu para a Assembleia Geral da CNIS sublinha como prioridades “a defesa e promoção do quadro de valores” destas instituições, que devem preservar a sua identidade e afirmar o seu valor da sociedade, e diz que é preciso “ter presente a sustentabilidade nos valores versus a sustentabilidade financeira". É esse o principal desafio para as instituições hoje?

A sustentabilidade sim, é sem dúvida o grande desafio, diria mesmo o grande problema.

Financeiro, mas de valores também?

Eu diria também sustentabilidade política, neste aspeto: é que ainda pairam no ar muitas dúvidas sobre quem deve implementar os direitos sociais, quem se deve dedicar a esta causa, se é uma competência só do Estado ou se também da sociedade e da Igreja. Por isso, a sustentabilidade política também é uma causa que ainda não está suficientemente esclarecida.

No atual contexto, em que temos um novo Governo que faz depender determinadas decisões dos acordos que vier a fazer com outros partidos, no parlamento, receia que possam estar em causa algumas parcerias e protocolos com o Estado?

Estou convencido que vai haver algum debate, mas que vamos continuar neste caminho que é irreversível.

"Temos instituições de solidariedade desde a aldeia mais recôndita do distrito de Bragança até à mais ocidental da ilha das Flores"

Foi sempre a sociedade, e concretamente a Igreja, a empenhar-se nestas causas humanas, particularmente depois de dezembro de 1996, quando foi assinado o Pacto de Cooperação para a Solidariedade, que confirmou o reconhecimento de que é, de facto, a sociedade que se deve organizar para responder a estas causas, por uma questão de presença, proximidade e envolvimento, e porque fica mais barato. Mas, para mim o mais importante é exatamente isto: é a presença, a proximidade. Quem está mais perto está em melhores condições para responder, para resolver.

Claro que às vezes se põe a questão se se deve inverter o caminho, mas penso que é irreversível. Aliás, do diálogo que vou tendo com os que vão pensando, e até tendo alguma influência na decisão, este é um caminho irreversível. Porque nestas causas – repito - quem está mais perto é quem está em melhores condições, e nós temos instituições de solidariedade desde a aldeia mais recôndita do distrito de Bragança até à mais ocidental da ilha das Flores. Por toda a parte há quem se organize, quem responda e faça muito, e muito bem.

Mas, com o novo quadro político-partidário, e o entendimento sobre quem deve levar por diante essas respostas sociais, sente que esse equilíbrio – o dos valores, o financeiro e o político, como acrescentou - pode ter uma nova configuração?

Penso que não vai haver nova configuração. Agora, o que tem de haver é um olhar muito atento, muito forte, à questão da sustentabilidade.

E pode estar em causa, por exemplo, responsabilizar as instituições ligadas à Igreja católica, ou de outra confissão religiosa, para darem este tipo de respostas sociais?

Há quem pense que as igrejas e as religiões não devem estar envolvidas nisto, mas isso não tem cabimento nenhum. No que respeita à Igreja católica, o homem é o caminho da Igreja. Onde está o homem, onde estão as pessoas, a Igreja tem de estar, e se não está, então não faz sentido. E toda a gente vai reconhecendo...

Nós estamos numa sociedade, queiramos ou não, que tem enraizada na cultura esta responsabilidade na sorte mútua, no sermos responsáveis uns pelos outros, e no cada um fazer o que está ao seu alcance para que não falte a ninguém aquilo que precisa. Isto é profundamente cristão.

Já se reuniu com a nova Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho. Quais são as suas expectativas em termos de relacionamento futuro?

Estou convencido de que as relações serão boas, de aprofundamento do diálogo e de auscultação permanente. Claro que é uma nova titular, não vem desta área...

Mas sentiu sensibilidade para estas matérias?

Muita sensibilidade e muita vontade de acertar caminhos. Estou convencido que a relação vai ser fácil, vai ser boa, mutuamente vantajosa. E digo 'mutuamente' porque - e o passado tem-nos dito isso -, para o Governo também é importante ter este setor pacificado, harmonizado.

"Previa-se que o apoio do Estado a este setor nunca desceria dos 50% dos custos das instituições. Neste momento está entre 38% e 40%, desceu"

Este setor tem sido uma base de estabilidade. Foi nos dois governos anteriores, e já era tradicional que assim fosse. Agora, claro que há uma tecla em que temos de bater fortemente: é na questão da sustentabilidade financeira destas instituições.

E como é que está a saúde financeira das mais de 3 mil instituições que integram a CNIS?

Não está boa. Aliás, falo não apenas pelas 3.039 associadas da CNIS, mas falo pelas 5.547 que existem no país. Um estudo ainda recente, que vai ser atualizado no próximo mês, mostra que 40% das instituições estão com resultados negativos.

A que é que se deve essa situação?

A várias razões e causas. Primeiro, quando foi assinado o Pacto de Cooperação para a Solidariedade, em dezembro de 1996…

Com o primeiro-ministro António Guterres.

Exatamente. Nessa altura previa-se, e estava consensualizado, que o apoio do Estado a este setor nunca desceria dos 50% dos custos das instituições. Neste momento está entre 38% e 40%, desceu. Ao mesmo - e isso acentuou-se particularmente a partir de 2012/2013, com a crise - também as comparticipações dos utentes foram diminuindo, primeiro porque temos de privilegiar os mais carenciados, depois porque também se instalou em parte da sociedade a ideia de que o Estado vai financiando, portanto podemo-nos demitir. Esta é, diria, uma causa importante, mas há outras razões.

No final da década de 90, e na primeira década deste milénio, foram-se acentuando as exigências em relação às instituições de solidariedade, exigências nem sempre com cabimento: mais custos, mais modificações, mais exigências...

E a consequente fiscalização.

Que muitas vezes é um ataque às instituições. Nós defendemos a fiscalização, claramente que é importante. É importante a transparência, a clareza, é muito importante... agora, a perseguição não.

Está a referir-se à fiscalização por parte do Instituto da Segurança Social?

Sim.

Há excesso de zelo?

É zelotismo, às vezes parece mesmo perseguição. O zelo é importante, mas o zelotismo é exagerado, sem cabimento. E depois sucessivamente mais exigências para isto, mais este documento para aquilo, mais uma presença inoportuna de fiscais. Isto torna muito difícil gerir uma instituição, e tem tido efeitos perniciosos, porque os dirigentes, que são muitos e muito bons, começam a demitir-se…

Mas, não tem de haver exigência quando se fala nas contas e no funcionamento das instituições?

Claro, é importante a máxima clareza, a máxima transparência. Eu peço às instituições - aliás está previsto no decreto lei publicado em 2014 - que as contas das IPSS sejam publicadas. É importante que sejam publicadas, não temos nada a temer, pelo contrário. Até porque, se não publicarmos as contas, pode instalar-se a ideia de que isto é um ‘forrobodó’, de que não falta nada. Publicando as contas toda a gente vê que, de facto, estamos mal.

Em janeiro de 2018 esteve no parlamento e pediu que fosse criada uma autoridade independente que fiscalizasse este setor. Esse pedido, na prática, ainda não teve resposta?

Não, e penso que vai continuar em banho-maria, na gaveta...

Até surgir um caso que possa escandalizar a opinião pública?

Claro. Às vezes há uma ou outra situação menos boa, ou má. Mas, são casos meramente pontuais.

Houve o caso da 'Raríssimas’, e um caso chega para manchar as restantes instituições.

O caso da 'Raríssimas' foi mal tratado. Pode ter havido excesso da parte de uma dirigente, mas é uma instituição nobilíssima, que faz muito e muito bem, muito importante.

O tratar-se tão mal uma situação leva as pessoas a demitirem-se, e nós estamos com dificuldades... aliás, há duas dificuldades neste momento nas instituições, para além da financeira: arranjarmos dirigentes - porque de facto, pede-se-lhes muito, estão sempre no fio da navalha e não se lhes reconhece a dedicação -, e em algumas zonas estamos com dificuldade em recrutar trabalhadores. Porque nestas instituições, que pugnam pelos direitos sociais das pessoas, que fazem muito e muito bem, não temos meios para pagar convenientemente.

Os salários são muito baixos na maioria das instituições?

Tiro o ‘muito’, mas são baixos. Quando há um aumento do salário mínimo – somos a favor do aumento, e agora vai para 635 euros - isso significa que mais de 60% dos trabalhadores estão atingidos pelo salário mínimo.

Que repercussões é que este aumento (de 35 euros) pode ter na sustentabilidade financeira das IPSS?

Os custos com o trabalho representam, em média, 60% dos custos das instituições. O aumento do salário mínimo tem um impacto grande porque são muitos trabalhadores que aumentam. Não aumenta tanto quanto deveria, mas aumenta, e o rendimento das instituições é igual. Enquanto na economia em geral se aumenta o salário aumenta o preço do material que se comercializa, aqui não, as receitas são exíguas para os custos. Claro que no diálogo com o Governo vou exigir que haja uma compensação para que a atualização dos acordos de cooperação acompanhe a atualização do salário mínimo.

Rever as tabelas?

Sim, rever as tabelas.

E no que tem de pagar, o Estado paga a tempo e horas ou é devedor?

Nos acordos normais paga a tempo e horas. Há atrasos quando há programas pontuais e especiais, e quando são programas que têm fundos comunitários, aí há um atraso muito grande.

Falemos das áreas de atuação das IPSS, as áreas prioritárias, do programa que apresentará este sábado na Assembleia Geral da CNIS. Quais são as áreas onde as IPSS são indispensáveis, neste momento?

Eu diria que são todas, mas sublinho quatro, a começar pelo apoio aos idosos. Um estudo feito mostra que 73,8% do apoio aos idosos em lares, centros de dia ou noite e apoio domiciliário, é prestado por estas instituições. E também na infância, com as creches – não tanto no pré-escolar – e os ATL’s, é grande o apoio.

As IPSS são chamadas a dar um contributo grande para a promoção, que é muito importante, da natalidade, na medida em que podem aumentar as respostas sociais, como as creches. Isso tem impacto no aumento da natalidade.

"73,8% do apoio aos idosos em lares, centros de dia ou noite e apoio domiciliário é prestado por estas instituições. E também na infância, com as creches e os ATL, é grande o apoio"

O apoio aos idosos e às crianças são os que as famílias mais precisam.

Claramente. Mas, depois temos de olhar para a coesão territorial e social. Nós sabemos que o nosso interior está deprimido, desertificado, e em muitas comunidades interiores o único apoio e até a única atividade económica que existe é prestada e exercida por uma IPSS. Vemos isso, uma pessoa vai pelo país e só encontra uma carrinha de uma instituição de solidariedade social que vai prestar apoio domiciliário ou buscar idosos para os acompanhar nalguma atividade. É importante, e qualquer programa que tenha como objetivo a coesão territorial tem de ter como parceiros fundamentais as IPSS.

Depois há outras áreas que temos de enfrentar…

A da saúde, por exemplo, nos cuidados continuados e cuidados paliativos?

Sim, sem dúvida. Em muitas das nossas instituições, sobretudo com idosos, já não é só apoio social que se presta, mas também de saúde. É importante que aqui haja uma comunhão entre os vários ministérios. O ideal era que tivéssemos um ministério de assuntos sociais, onde estivesse contemplada a saúde, a ação social e a educação, porque as IPSS podem, e já prestam um apoio na saúde muito importante, particularmente aos idosos, mas também a pessoas com deficiência.

Mas, propõe a criação de um novo ministério a pensar especificamente no setor social? Que incluísse a saúde, a educação?

E a ação social, a solidariedade social.

Já alguma vez fez essa proposta?

Tenho feito e já a vi no programa de alguns partidos, assumida como um objetivo. No atual Governo não entrou… mas, é importante, porque as respostas são pluridisciplinares, não são estanques. E notamos, de facto, uma dificuldade de harmonia entre os vários ministérios.

Um ministério de assuntos sociais agilizava as coisas?

Muito. Penso que seria importante e que é um caminho a percorrer.

As respostas não são apenas de saúde, de educação, de ação social, são respostas para as pessoas.

De que forma, no âmbito das IPSS, se olha o desafio da ecologia, da conversão energética no quotidiano das instituições?

É a quarta área em que temos de prestar atenção. As IPSS são grandes consumidoras de energia, a vários níveis, porque muito do trabalho que se faz é dentro de quatro paredes. Ora, podiam também ser produtoras de energia. Mas, é importante que haja um programa de apoio nesse sentido, porque as instituições não têm capacidade de investir nessa área.

É obrigatório falarmos da situação económica do país. Deixam-no descansado os dados mais recentes sobre a descida do desemprego e os que indicam que o risco de pobreza diminuiu para 17,3% da população, sendo o mais baixo de 2003? Como é que lê esses números?

Numa primeira leitura os números satisfazem, numa segunda leitura deixam-nos interrogações.

Notamos que há um fosso maior, uma desigualdade crescente. Parece-me que os pobres, mesmo, não estão melhores do que estavam há uns anos. Vemos que a pobreza ainda afeta muita gente.

E o combate à pobreza está melhor?

Em teoria estaria melhor. Penso que se fala bastante do combate à pobreza e pratica-se pouco. É importante que haja, de facto, uma aposta, uma estratégia de combate à pobreza, e também aqui o combate é pluridisciplinar.

Tem de haver uma vontade séria de erradicar da pobreza, porque quase 18% da população - 17.3% - ainda é muita gente. Descer para um dígito eram os objetivos do milénio. E mesmo um dígito, enquanto houver um pobre não podemos dormir descansados!. Mas, é importante combater a pobreza, particularmente no nosso interior, nas periferias das cidades. O aumento do emprego, que é bom, não se nota aí, nem a diminuição da pobreza.

Nas cidades um dos rostos visíveis da pobreza são as pessoas em situação de sem-abrigo. Acha possível retirá-las das ruas até 2023, como quer o Presidente da República?

Fico particularmente feliz e contente com esta batalha assumida pelo Presidente da República, e quando ele estabelece um ponto de chegada obriga a fazer alguma coisa.

2023 é o timing da legislatura.

É, e espero que se consiga. Mas, não basta dar uma casa às pessoas sem-abrigo. Para as erradicar das ruas temos de criar equipas pluridisciplinares. Muitas vezes estas pessoas estão assim por opção, com um histórico pessoal difícil. É preciso ajudar estas pessoas, ajudá-las mesmo, defender a sua dignidade. Não basta vir com a teoria de que eles é que têm de subir, é preciso ajudá-las mesmo a ultrapassar situações e a encontrar um projeto de vida com dignidade.

Esta é também uma área onde as IPSS atuam por todo o país.

Por todo o país, e algumas muitíssimo bem. Em Lisboa temos casos que deviam ser bem apresentados.

Comentários
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  • Filipe
    22 nov, 2019 évora 12:00
    O Estado é patrão de muita gente , fazer as contas aos apoios e verbas da UE para verem quantos humanos em Portugal vivem por conta do Estado , parece uma forma camuflada do serem funcionários públicos . Um Portugal de regalias isentas de impostos e a fundo perdido para alguns . Começo a perceber como é difícil retirar ou acabar com os sem abrigo , porque estão ligadas a eles umas centenas de instituições de apoio com verbas a fundo perdido e também o interesse em Portugal de haverem mais divórcios e violência doméstica , enquanto isso as instituições e privados , mesmo advocacia e tribunais , mamam por conta do Estado a fundo perdido sem pagarem impostos . Uma teia de interesses por baixo da mesa . Se aqueles agentes ontem das forças de segurança presentes na manifestação tivessem nas ruas e estradas Portuguesas por fim a fiscalizar o crime e código da estrada ... começava alguém do outro lado a queixar-se que não tinha lucro ... Parem , façam uma limpeza nas leis e naqueles que dizem que trabalho é ir todos os dias ao local de trabalho picar o ponto sentar na cadeira e esperar por dia 20 de cada mês , já chega .

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