25 out, 2019
Os presságios através dos sonhos são uma constante na "Odisseia". Homero oferece-nos aliás dois tipos de presságio, os verdadeiros e os falsos.
Os verdadeiros são sonhos que entram neste mundo através de um portal feito de chifre polido. Aquilo que é sonhado através do modesto chifre é uma antecipação exata do futuro. Vai acontecer mesmo.
Os presságios falsos e nocivos passam para este mundo através de um portal esculpido num marfim luxuoso. O que reluz engana.
A poesia de Homero era um reflexo de um mundo ainda poético, ainda alimentado por uma linguagem que desconhecia o desencantamento do mundo. A poesia não estava só nos livros, estava no mundo, no senso comum.
A modernidade trouxe o cienticismo que criou o tal desencantamento do mundo. A visão religiosa, poética e mística do mundo foi destruída pelos bulldozers da tecnologia e ciência. Depois a pós-modernidade trouxe o cinismo igualmente desencantado. Mas a verdade é que o encantamento do mundo é insuperável, até porque muitas vezes é objectivo, real e, sim, científico.
O que diriam se eu vos dissesse que as árvores falam entre si? Diriam que eu estava a criar uma fábula. Sucede que essa fábula é real. Vejam por favor um documentário de Judi Dench chamado "My Passion for Trees”.
Ali podem ver como as árvores falam mesmo entre si através de toques das raízes que comunicam como as células do nosso cérebro. Há sinapses debaixo dos nossos pés.
Os bosques encantados das lendas, arvoredos que formavam um único ser vivo e místico, eram percepções precisas da realidade. Uma floresta (uma verdadeira floresta, não estas coisas que temos em Portugal) é de facto um único sistema interligado e senciente.
Como tem salientado Vergílio Azevedo no Expresso, a tese da Gaia, a terra como um único ser vivo, não é mero espiritualismo.
O que diriam se eu vos dissesse que algumas mulheres sonham com o cancro dias antes de sentirem o caroço? Diriam que eu estou a criar outra fábula, não é? Lamento, mas tenho más notícias para o cinismo e para o cienticismo.
Em “Filhos da Quimio”, o autor, Nelson Marques, teve coragem para colocar no papel aquilo que ouviu no terreno: Sim, sonhei com o cancro antes de sentir o caroço na mama! - eis um sonho negro que passou pelo portal do modesto chifre. Estou a elogiar o autor, porque outros, dentro da lógica cínica ou cienticista, limitar-se-iam a apagar estas declarações, assumindo que só podiam ser delírios provocados pelo medo da doença.
Onde é que eu quero chegar? Qual é a moral da história? Sim, devemos prezar a ciência, mas não podemos esquecer a linguagem encantada do mundo.
A poesia está no mundo, não está apenas nos livros. A poesia não é um adorno estético, é um bisturi sobre a realidade.