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José Luís Ramos Pinheiro
Opinião de José Luís Ramos Pinheiro
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“Geringonça 2.0” ou uma bomba ao retardador?

09 out, 2019 • Opinião de José Luís Ramos Pinheiro


Fazer a “geringonça” e ao fim de quatro anos reforçar a votação no PS e entregar votantes a outros partidos de esquerda foi um mau negócio para o PCP e até discutível para o Bloco de Esquerda.

Por isso, a “geringonça 2.0” teria sempre que ser diferente. O Bloco com mais condições à cabeça. E o PCP a deitar contas à vida. Ameaça ficar de fora, precisa de respirar o ar fresco da rua que sempre lhe deu iniciativa e protagonismo.

Com um dos pés bem preso à maioria parlamentar de apoio ao PS, os comunistas quase não puseram o outro na rua, durante os últimos quatro anos. A rua, esse grande palco (manifestações, desfiles, lutas sociais, greves e negociações) é o pão que sempre fermentou e alimentou a militância comunista. Sem a rua, o PC não é a mesma coisa. Perde identidade e fulgor.

Nas eleições de 6 de outubro, o PCP teve menos 115 mil votos. E o Bloco perdeu cerca de 60 mil. Juntos, os dois partidos que integraram a Geringonça com o PS viram a sua quota eleitoral reduzida em cerca de 175 mil votantes. Ainda assim, o Bloco manteve o mesmo número de parlamentares, mas os comunistas desceram de 17 para 12 deputados.

Repare-se que o PS, nestas eleições, vence com clareza, mas fica cerca de 120 mil votos abaixo da PAF, há quatro anos, e a 300 mil da votação obtida por Passos Coelho, em 2011 - sozinho, sem coligação.

Face a 2015, os socialistas recolhem agora qualquer coisa como mais 124 mil votos, alguns, porventura, dos colegas da Geringonça. E, para além desses votantes perdidos por Bloco e PCP para o PS, terá havido mais umas dezenas de milhares de eleitores daqueles dois partidos que presumivelmente voaram para o PAN ou contribuíram para dar ao Livre o seu lugar na Assembleia da República.

Claro que apesar de tudo isto, o PCP não inviabilizará um governo minoritário do PS. Mas vai querer estar de mãos livres para o "amanhã que já canta": durante esta legislatura, as economias portuguesa e europeia poderão ser de novo assoladas por uma crise económica, potenciada pelo Brexit e pela guerra comercial fomentada por Donald Trump.

A diretora-geral do FMI, acabadinha de chegar à função, estreou-se com uma previsão perturbadora: a guerra comercial entre Estados Unidos e China pode desencadear uma quebra económica que afetará 90% dos mercados mundiais, provocando consequências para uma geração.

Se assim for (para mal de todos nós), o PCP quer lá saber da “geringonça”.

E mesmo que o Bloco, desta vez com uma fatura mais pesada, se entenda para já com António Costa, vai acabar por culpá-lo nessa altura, por uma crise qualquer que o obrigue a cortar alguma coisa que já devolveu ou prometeu devolver.

Curiosamente, agora que venceu as legislativas, António Costa acaba por estar mais fragilizado do que quando as perdeu, em 2015.

Nessa altura, o líder do PS era o cimento que agregava uma maioria para derrubar Passos Coelho, impedindo-o de governar. À época, o ciclo económico invertia-se a olhos vistos, por cá e lá por fora. E as medidas da troika - duras e indesejáveis - haviam dado ao país, confessava-se baixinho, a indispensável boia de salvação.

Agora, o vento mudou. Um país em crise seria rapidamente devolvido pelos ‘geringonços’ à procedência, isto é, ao PS e a quem os socialistas se pretendessem aliar, enquanto a crise durasse. Tudo compreensível. A extrema-esquerda que tem de si própria uma imagem justa e generosa arrepia-se (alguém gosta?) pela perspetiva de governar em tempos de crise. Essa, a crise, que outros a paguem, de preferência a direita e se assim tiver que ser, o próprio PS.

No quadro de um ciclo económico negativo, não é difícil prever que a Geringonça 2.0 converter-se-ia num corpo obsoleto ou numa verdadeira bomba ao retardador.

António Costa não ignora que assim é. E bem sabe o que aí pode vir. Talvez por isso, logo na noite eleitoral, Costa lá começou a tentar enroscar todos os parafusos possíveis no mecanismo de uma nova Geringonça. Para além do PCP e do Bloco, tratou de ‘aparafusar’ o Livre e o PAN, cujas vozes inovadoras ou radicais também preocupam comunistas e bloquistas.

Neste quadro e apesar da derrota histórica que diz ter infligido à direita, António Costa deve estar a torcer para que Rui Rio fique. Será um aliado a considerar. Rio e Costa conversam e tanto basta para pressionar a Geringonça durante a sua vigência. Mas se uma qualquer reconfiguração da Geringonça viesse a implodir a meio da legislatura, então, num cenário de emergência patriótica e financeira, Rui Rio e o PSD poderiam desempenhar outro papel e evitar uma crise política.

Não é evidente que Rui Rio se preste a tanto, mas parece mais improvável que um seu qualquer sucessor se disponha a ser uma tábua de salvação do PS, na ressaca de eventual desmoronamento da Geringonça.

Rio não terá, como até agora nunca teve, vida fácil. Nas semanas de campanha eleitoral, e animado pelo caso de Tancos (sobre o qual, na noite eleitoral, António Costa nem quis ouvir falar), o líder do PSD mostrou-se mais claro e assertivo. Mas as declarações de Rui Rio durante a noite eleitoral exibiram um líder prisioneiro dos seus fantasmas, sejam eles a comunicação social, as sondagens e os críticos. Sobrou-lhe em recriminação o que lhe faltou em visão ou desígnio para o país.

Falta saber se são melhores, mas as alternativas vão surgir. Nalguns casos, como Luís Montenegro, sem surpresa. Noutros, nem tanto. Maria Luís Albuquerque, lançada por Cavaco Silva (como que a reeditar a "rodagem" do carro que disse ir apenas fazer ao congresso da Figueira da Foz que pela primeira vez o elegeu), é um novo nome a considerar.

Já no CDS, a saída de Assunção Cristas deixa à vista um partido afinal ainda órfão de Paulo Portas que, sendo ou não líder, marcou a sua trajetória nos últimos vinte anos.

Assunção sai com o sabor amargo de quem fez muito mais do que os resultados eleitorais das legislativas indicam. Durante dois anos foi uma voz consistente da oposição, por vezes a única. Preparou bem as autárquicas, mas não fez o mesmo com as europeias. A partir daí, perdeu energia que durante tanto tempo contrastou com a oposição morna do PSD.

Seja ele quem for, o próximo líder do CDS tem um desafio maior. A voz mais radical da direita nestas eleições, André Ventura, chegou ao parlamento. Não faltarão propostas radicais destinadas, antes de mais, a clarificar ideologicamente o espaço da direita e as respetivas causas, obrigando o CDS a fazer escolhas.

Mas para além do Chega, a Iniciativa Liberal também aterrou em São Bento. Moderna, com marketing e discurso incisivo, esta direita pode causar problemas não só ao CDS, mas também ao PSD.

Cada destes novos partidos à sua maneira, vão mexer com a direita, como o PAN e o Livre já estão a mexer com a esquerda.

Apesar de um parlamento mais diversificado, faltam, em geral, lideranças qualificadas capazes de darem um testemunho diferenciador. A abstenção tem muitas causas, mas a ausência de lideranças mobilizadoras, consequentes e credíveis é seguramente uma delas. A requalificação da atividade política é um ‘chavão’, mas neste caso obrigatório. Como é também indispensável seduzir as novas gerações para a vida pública. E não basta, para o efeito, agitar bandeiras fáceis como o PAN tem feito, articulando animais e ambiente, por vezes explorando solidão e demonstrando ignorância. Tratada demagogicamente, uma boa causa como a do ambiente, não é mais do que uma bandeira destinada a recolher o voto de quem se resigna a ser uma voz de protesto.

Ainda assim, o problema da abstenção deve ser profundamente encarado e não pode reduzir-se aos políticos e aos seus desempenhos. O funcionamento da democracia deve comprometer globalmente a sociedade: cidadãos e instituições - todas sem exceção, incluindo os media e as plataformas informativas.

Na atual floresta de comunicação, o sistema democrático exige – e cada vez exige mais - melhores plataformas de esclarecimento. Informações temos muitas, esclarecimento nem por isso.

O populismo é o adversário ideal do bom jornalismo, porque dá razões e oportunidades para esclarecer. Os media têm aqui uma oportunidade, para uma voz diferenciadora nas suas plataformas de origem e em todas as outras em que intervêm.

Mas não há populismo só na política. Se houver anemia editorial e debilidade económica, o populismo é um risco – pega-se por contágio. Atraído pelo populismo, o jornalismo, usando armas semelhantes, atraiçoa-se a si próprio.

A democracia exige bom jornalismo, mas ele só é viável com empresas competitivas e profissionais preparados.

Governos (incluindo o nosso) e cidadãos (que exigem, mas não desejam pagar pela boa informação), têm encolhido os ombros, perante o cerco económico aos media. Tal como acontece nos sonhos maus, seria bom que um dia não acordássemos todos tarde demais.

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