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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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Opinião

​Querida Greta

01 out, 2019 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Obrigada pelo teu testemunho e pela tua coragem. Mas o que realmente me preocupa são os seres humanos: que no século XXI haja milhões de crianças sem assistência médica, sem vacinação e sem acesso à escola.

Escrevo-te porque aprecio o teu esforço, a tua juventude e o teu empenho em salvar a humanidade neste mundo em profundo desequilíbrio. Habitamos uma casa que devia ser comum e agora está doente e se tornou ameaçadora, não só para o nosso modo de vida ocidental mas para a subsistência de todos os seres humanos. Antes de avançarmos, aproveito para te dizer que amo as baleias e os tigres da Malásia mas o que realmente me preocupa são os seres humanos: que no século XXI haja milhões de crianças sem assistência médica, sem vacinação, sem acesso à escola, parece-me inultrapassavelmente revoltante e uma causa de desgosto e de preocupação constante.

Mas, claro, reconheço o mérito de quem investiga e cuida dos animais e das plantas, das paisagens, dos recursos naturais, do ordenamento do território, do reverter dos focos de poluição, da produção de energia limpa, … todas essas coisas maravilhosas que constituem a estrutura mãe da nossa vida na terra e o cenário natural de um existir dignamente humano e pleno e pacífico, no belo planeta azul. A guerra, que muitos acham uma medida inevitável de controlo do crescimento populacional e uma purga justificada dos pecados individuais e coletivos, também me preocupa imenso. Aflige-me este massacre constante de inocentes por mecanismos de destruição não convencional e, as mais das vezes, inidentificáveis, logo, impossíveis de controlar e de suprimir. Esse desgosto da guerra tornou-me uma europeísta convicta e, por isso, esta loucura do brexit parece-me isso mesmo, uma loucura bárbara, bronca e tresloucada, feita de ganância e alzheimer da História. Por isso, já vez, querida Greta, também estou zangada.

No entanto, tenho aprendido a canalizar a minha irritação para fins úteis e, assim, as pessoas, sobretudo as frágeis e aquelas que ainda não têm futuro, são o centro das minhas atenções, pois estão a crescer na incerteza mais constante, mesmo nas sociedades aparentemente pacificadas e com alguma segurança social. E acho que todos esses meninos e meninas que vivem nas margens das margens uma vida indigna do mais pequeno animal, triste e dolorosa, traumática e insalubre, têm para mim um valor superior a qualquer calote polar e é precisamente para eles, especialmente para eles, que quero que o céu continue azul e o oceano seja limpo, que se reduzam as emissões poluentes e se tenha controlo sobre o aquecimento global. Nos meus dias de incerteza e neura, penso naquelas mães da Síria, fugindo com os seus pequenitos nos braços, sob o fogo ou a nuvem de gazes tóxicos: esses meninos nunca chegarão à escola, Greta, nem à ONU. Ninguém lhes roubou nada porque nunca tiveram nada… Afinal, por uma culpa global, vivem uma infra-vida e é incrível que ainda consigam andar de baloiço no campo de refugiados que é o único habitat que conhecem.

Isto, querida Greta, leva-me à questão final, à única importante, talvez. Desculpa-me este discurso todo, a dificuldade em ir direta ao cerne: significa apenas que os problemas que vivemos são incrivelmente complexos, que mesmo os cientistas estão na aurora das suas descobertas, que conciliar os interesses comuns planetários com a vida real de milhares de sociedades diferentes e a prioridade de fornecer comida e trabalho a milhões de pessoas em circunstâncias alarmantes de desigualdade, é um desafio que já engoliu muitos políticos e ativistas sérios e trabalhadores e é a batalha quotidiana de muitas pessoas anónimas, a começar pelos pais de família e pelos professores de todo o mundo.

Por isso tenho pena de te dizer, embora me pareça útil e necessário, mas os teus pais e os teus mentores deveriam ter-te ajudado a não gritar, a não fazer um discurso que, para além da relevância dos protestos, argumentou em direção ao medo, à angústia e à confusão, transformando os opositores em inimigos, deitando por terra as bases de uma cultura democrática. E queres a prova? Pois, agora já leste o Twitter do troll global e talvez alguém te tenha explicado o que está em jogo quando os discursos demagógicos ou apenas emocionais fazem eleger para cargos de influência global precisamente o tipo de pessoas que tu criticas. Levaste um tiro no porta-aviões, ainda bem que não era nuclear.

Mas não te preocupes, ainda há remédio: é preciso ajudar os mais novos a perceber duas coisas: que isto não é uma crise de girassóis nem de libelinhas, mas uma crise sobre a nossa ideia de pessoa; e que a educação para a vida democrática deve ser o objetivo mais urgente de todas as sociedades abertas e livres, pois, com o mesmo ritmo da subida das águas, amadurecem, perigosamente, gerações sem raízes nem memória. Apesar de tudo, obrigada pelo teu testemunho e pela tua coragem.

Comentários
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  • AP
    10 jul, 2020 Portugal 19:40
    Tudo são prioridades. Só que uns têm coragem de ir para a rua lutar pelos seus ideais. Outros não. Mas por favor... não critiquem quem tem coragem.
  • ivan leduc de lara
    02 out, 2019 Curitiba 02:16
    Essa "culpa global" a que você covardemente se refere sem apontar o dedo...é a culpa de todos os que não apoiaram Assad e seu governo contra os ataques químicos promovidos pelos "capacetes brancos" apoiados criminosamente pela ONU.
  • Carla Fraga
    01 out, 2019 Lisboa 21:32
    Querida Cristina, A Greta com bem menos, que a Cristina iniciou uma causa que é importante para todos nós, inclusive para as criancinhas sobre as quais fica-lhe bem escrever. O que esta adolescente vêm alertar sobre o meio ambiente é verdade, é legítimo, como tal, deve preocupar os habitantes conscientes do planeta terra independentemente dos supostos lobbies que a acompanham... A querida Cristina, ganharia muito mais se, ao invés de dedicar este artigo extenso a uma adolescente de 16 anos, usasse a sua influência, para quiçá, escrever um artigo igualmente extenso aos líderes mundiais, em defesa dos problemas que denuncia. E seguindo o exemplo da Greta, porque não, iniciar também uma campanha em defesa das crianças da Síria, de Angola, de Moçambique, Serra Leoa, Nigéria, ou de qualquer parte do mundo, ou qualquer outra causa digna de protesto, que lamentavelmente sobejam no contexto mundial. Não se esqueça porém, que todos os seres do mundo precisam de um planeta onde possam viver, que a esperança no futuro depende de muitas condições, o ecossistema é uma delas...
  • Bom artigo!
    01 out, 2019 LX 18:11
    Bom artigo e bom comentário de Joaquim Santos. Os "iluminados" e ignorantes são um GRANDE problema actual! É muito difícil meter na cabeça formatada de um ambientalista ou animalista que existem outras prioridades como violação de direitos humanos!
  • Adelino Dias Santos
    01 out, 2019 Mealhada 15:18
    Li na totalidade e gostei da sua opinião. Todavia devo manifestar a minha dúvida de que a adolescente Greta tivesse sido ouvida, como foi, se se tivesse manifestado em Portugal. Haveria logo alguns incomodados que a tentariam calar, como acontece com os que se manifestam sobre outros temas, por ex.: acordo ortográfico.
  • Joaquim Santos
    01 out, 2019 Tojal 13:34
    Dois modos de ver o mundo de forma antagónica: Greta, mandatada pela elite iluminada, defende o planeta, esquecendo o homem que sofre, Cristina Sá Carvalho vê o homem que sofre sem esquecer o mundo que o envolve.
  • Adelino Dias Santos
    01 out, 2019 Mealhada 11:45
    Li na totalidade e gostei da sua opinião. Todavia devo manifestar a minha dúvida de que a adolescente Greta tivesse sido ouvida, como foi, se se tivesse manifestado em Portugal. Haveria logo alguns incomodados que a tentariam calar, como acontece com os que se manifestam sobre outros temas, por ex.: acordo ortográfico.