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Eunice Lourenço
Opinião de Eunice Lourenço
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Adeus ‘Proféssor’

28 set, 2019 • Opinião de Eunice Lourenço


Morreu Nelson Traquina, professor de Ciências de comunicação que marcou várias gerações de jornalistas.

Ainda hoje uso expressões que o professor Traquina usava nas aulas com aquele seu sotaque entre o açoriano e o homem do mundo que estudou em inglês e se doutorou em França. As “avantages e desavantages” de ser jornalista, “o jornalismo não é uma profession, é uma vocation”, “o jornalismo está no sangue”. E quantas vezes, quando começo a escrever ou a rever uma noticia, me lembro do seu “lead diz nada, lead diz nada”.

O Professor (ler “proféssor”) Nelson Traquina marcou várias gerações de jornalistas formados na Universidade Nova de Lisboa, onde chegou nos anos 80. Vimos todos os mesmos filmes – “Deadline USA”, “His girl Friday”, “Os homens do Presidente” e “O Homem que matou Liberty Wallace” fizeram parte das aulas anos após anos -; tivemos, primeiro, de ler as suas fotocópias, depois os seus livros, entre os quais o “Jornalismo: questões, teorias e estórias”, em que organizou muitos dos textos que nos passava nas aulas.

Com ele comecei a ler Chomsky, soube o que era o “new journalism”, aprendi que técnicas usava o Truman Capote… E percebi uma coisa muito importante que tantas vezes relembro: as nossas primeiras fontes são a família, os amigos, os vizinhos. Quando esquecemos isso desligamos do mundo real, das coisas que interessam às pessoas e são faladas ao jantar ou no, nos dias de hoje, postadas nas redes sociais.

Havia quem gostasse, quem gostasse mesmo muito daquele professor que nos ensinava a escrever notícias com o seu linguajar do mundo; havia quem não suportasse a figura. Creio que, mesmo os que não gostavam, ainda hoje se lembram do que aprenderam com ele. “Mata gerúndio, mata gerúndio”, repetia, enquanto entregava textos riscados. “Lead diz nada, lead diz quase nada”.

Com raízes açorianas, de famílias emigrantes, viveu e estudou em Massachusetts, veio para Portugal no pós-25 de Abril, fazer a cobertura do período revolucionário para agências internacionais. E por cá foi ficando até, recentemente, ter voltado para os EUA. Morreu na quinta-feira, aos 71 anos, mas a notícia só cá chegou hoje.

Conhecia bem o que ele chamava de “tribo jornalística” e acabou por escrever um livro sobre essa comunidade profissional que ele considerava ter uma dimensão quase mítica.

Para ele, os jornalistas eram uma “comunidade interpretativa” transnacional, uma tribo que se entende entre si, que partilha uma linguagem, um conjunto de valores e toda uma cultura profissional que foi ganhando, devido às suas representações na literatura e no cinema, uma dimensão quase mítica, que explica a atração que os jornalismo teve durante décadas para as novas gerações. Apesar de, como tantas vezes nos lembrava nas aulas, fazermos um trabalho que, no dia seguinte, servia para embrulhar o peixe. Ou, numa versão de tempos ainda mais modernos, um trabalho que pode ser morto por um post ou um tweet qualquer sem qualquer obrigação deontológica.

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