19 jul, 2019
Se tivesse de escolher uma palavra para explicar o catolicismo, qual seria a minha escolha? Acho que escolheria “dilema”, porque o dilema moral é a consequência do "livre arbítrio", que seria a resposta mais óbvia.
A nossa fé dá-nos uma certeza: nós sabemos que isto vai acabar bem, sim, a história vai acabar bem. Mas, até chegarmos ao juízo, há um caminho enorme de tensão, isto é, de dilemas que se atravessam no caminho do nosso livre arbítrio.
Ter livre arbítrio é uma bênção e um fardo ao mesmo tempo. O fardo da escolha pesa. A liberdade tem um custo. De resto, é por isso que inventamos imensas ideologias: não queremos pagar esse custo. Os mais diversos “ismos” são mecanismos que abolem o fardo da escolha, pois dizem-nos que não temos de escolher entre diversas alternativas legítimas, visto que só há uma alternativa legítima. O fanático defende o seu “ismo” de forma radical, porque não quer perder esta segurança, não quer cair na liberdade onde tem à espera o fardo da escolha. Ser católico é não ter medo dessa solidão livre e pesada.
É por isso que, quando muitos jovens católicos me pedem uma espécie de lista de leituras, eu não recomendo a literatura religiosa convencional, mas sim livros que ilustram esta tragédia do dilema. Por exemplo, se começasse neste momento uma catequese para adultos, iniciava as aulas pela “Odisseia” de Homero. Para começar, temos o dilema de Telémaco, filho de Odisseu (Ulisses), que tem de decidir uma coisa: ou segue a sua pulsão moral ou segue a sensatez política; ou conserva a sua riqueza e poder em Ítaca ou mantém a fidelidade ao seu pai desaparecido. Conservar a sua riqueza implica recasar a mãe, Penélope, com um dos pretendentes que – segundo a lei – ocuparam o castelo devido à ausência do rei (Odisseu). Ou seja, conservar o seu status implica trair o pai ou a esperança de voltar a encontrar o pai. É filho ou príncipe? Manter a fidelidade ao pai, que segundo a lógica só pode estar morto, implica arriscar perder tudo. Ele arrisca e parte em busca de Odisseu.
Este dilema muito humano de Telémaco encontra paralelo no dilema de Calipso, a deusa que salvou ou capturou (depende do ponto de vista) Odisseu. Para ser uma deusa pura, Calipso não pode amar Ulisses como ama; amá-lo transforma-a numa deusa blasfema e impura aos olhos dos outros deuses. Em cima desta tensão que mantém com outros deuses, Calipso tem um segundo dilema: só pode manter Ulisses, o seu amor, à força. Liberta-o, como sabemos. O que nos remete para o dilema de Ulisses, o pai de todos os dilemas: a vida eterna com Calipso, ou a vida finita e o consequente regresso a Ítaca e a Penélope? Entre a imortalidade e a pátria, escolhe a segunda. Entre a juventude eterna ao lado de uma deusa e o envelhecimento ao lado de uma mulher, escolhe o segundo.
Como leitores ou mesmo como intelectuais católicos, nós temos de treinar a nossa imaginação moral à volta do dilema, à volta da tragédia que se esconde em cada decisão humana. Nesse sentido, não há nada como voltar à “Odisseia”, que, como se vê, é construída como uma escada em caracol, um vórtice de dilemas atrás de dilemas que se cruzam entre si. Este vórtice de dilemas é a vida humana, qualquer vida humana, da mais heróica à mais banal.
PS: esta crónica parte para férias; até Setembro.