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Reino Unido. 30 mil pessoas receberam sangue infetado em 20 anos

20 mai, 2024 - 22:35 • João Pedro Quesado com Reuters

Inquérito publicado esta segunda-feira aponta a morte de 3 mil pessoas em resultado de transfusões e doações com sangue infetado por VIH ou hepatite C. Algumas vítimas entraram em ensaios clínicos sem saber, e crianças foram infetadas por doações de grupos de alto risco, mas os potenciais problemas já eram conhecidos desde 1983.

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Um inquérito publicado esta segunda-feira revelou que mais de 30 mil pessoas no Reino Unido receberam sangue e produtos sanguíneos infectados nas décadas de 1970 e 1980, no Serviço Nacional de Saúde britânico. As conclusões apontam que a ocultação dos casos não foi acidental, mas "subtil" e "assustador nas suas implicações".

Segundo o relatório, entre as mais de 30 mil pessoas afetadas, 3 mil morreram depois de ter contraído hepatites ou o vírus da SIDA, o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH).

O presidente do inquérito, Brian Langstaff, disse que o governo britânico escondeu a verdade para "salvar a aparência e poupar despesas", acrescentando que o encobrimento foi "mais subtil, mais difundido e mais assustador nas suas implicações" do que qualquer plano de conspiração orquestrado.

As famílias das vítimas e dos sobreviventes pedem justiça há vários anos. Langstaff, que liderou um inquérito encomendado por Theresa May em 2017, disse que a escala do que aconteceu foi horrível e surpreendente.

Em alguns casos, produtos sanguíneos provenientes de doações de prisioneiros norte-americanos ou de outros grupos de alto risco pagos para doar foram utilizados em crianças, infectando-as com VIH ou hepatite C muito depois de os riscos serem conhecidos.

Outras vítimas foram utilizadas em ensaios médicos sem o seu conhecimento ou consentimento. Aqueles que contraíram o VIH foram muitas vezes rejeitados pelas suas comunidades.

"Médicos não colocaram segurança dos pacientes em primeiro lugar"

“Este desastre não foi um acidente”, considerou Langstaff, aplaudido de pé pelos ativistas. “As infeções aconteceram porque as autoridades – os médicos, os serviços de sangue e os sucessivos governos – não colocaram a segurança dos pacientes em primeiro lugar”, acrescentou.

Stephen Lawrence recebeu sangue depois de ser atropelado por um carro da polícia em Londres, em 1985. Dois anos depois, foi diagnosticado com HIV e hepatite C, aos 15 anos.

“Fui acusado de usar drogas, beber e tudo mais”, afirmou à Reuters, acrescentando que não foi indemnizado porque os registos desapareceram. “É uma questão de justiça”, disse. "Tenho lutado com isso há 37 anos."

O uso de sangue infectado resultou em milhares de vítimas nos Estados Unidos, França, Canadá e outros países. Em 2022, o governo britânico decidiu fazer um pagamento provisório de 100 mil libras a algumas das pessoas afetadas.

Clive Smith, presidente da Sociedade de Hemofilia, explicou que o escândalo abalou a fé no sistema médico. "(Isso) realmente desafia a confiança que depositamos nas pessoas para cuidar de nós, para fazer o seu melhor e para nos proteger", sublinhou aos repórteres.

Em reação, o primeiro-ministro Rishi Sunak disse que foi “um dia de vergonha para o Estado britânico”.

“O resultado deste inquérito deverá abalar profundamente a nossa nação”, afirmou o líder do Partido Conservador, acrescentando que os ministros e as instituições falharam da “forma mais angustiante e devastadora”.

“Quero apresentar um pedido de desculpas sincero e inequívoco por esta terrível injustiça”, declarou Sunak perante o Parlamento, prometendo uma compensação total às pessoas afetadas.

Autoridades conheciam riscos em 1983

O sangue e hemoderivados infectados eram usados para transfusões, que nem sempre eram clinicamente necessárias, e como tratamentos para distúrbios hemorrágicos, como a hemofilia.

Os hemofílicos receberam concentrados de Fator 8 dos Estados Unidos, que apresentavam um risco particularmente elevado.

Alguns dos concentrados continham o vírus VIH, segundo o inquérito, mas as autoridades não conseguiram mudar para alternativas mais seguras e decidiram, em Julho de 1983, um ano depois de os riscos se tornarem aparentes, não suspender a sua importação.

As falhas sistémicas resultaram na infecção de 80 a 100 pessoas pelo VIH por transfusão, concluiu o inquérito. Cerca de 26.800 foram infectadas por hepatite C, muitas vezes por ter recebido sangue após um parto ou uma operação.

Ambos os grupos ficaram desprotegidos devido à complacência dos médicos relativamente à hepatite C e à lentidão em responder aos riscos da SIDA, agravada pela ausência de desculpas significativas ou de reparação.

“Será surpreendente para quem ler este relatório que estes eventos possam ter acontecido no Reino Unido”, disse Langstaff.

O inquérito do ex-juiz não tem competência para recomendar processos.

Em França, o antigo ministro da Saúde Edmond Hervé foi condenado em 1999 pelo papel no escândalo no país, mas não recebeu qualquer pena. Michel Garretta, diretor do centro nacional de sangue da França, foi condenado a quatro anos de prisão.

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