Salvação ou morte? Investidores estrangeiros já controlam metade dos clubes da I Liga

Clubes com base no associativismo sentem-se cada vez mais encurralados, empurrados a adaptar os seus modelos de gestão. A alternativa é aceitar ficar longe das I e II Ligas. Há casos de sucesso, mas nos vários projetos falhados, como Desportivo das Aves e Olhanense, as consequências sobraram para quem fica: os sócios.

11 ago, 2023 - 06:30 • Eduardo Soares da Silva



Foto: Lusa
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Em Paços de Ferreira, a dúvida está instalada. A entrada de investimento externo já é tema de conversa pelos corredores e nas bancadas da Mata Real. A maioria dos candidatos à subida na II Liga já consegue pagar aos jogadores ordenados quase três vezes superiores aos que o clube consegue suportar.

Na primeira e na segunda divisões, mais de metade dos clubes já são controlados por investidores estrangeiros. Para os que ainda resistem, vender o clube a fundos de investimento torna-se cada vez mais a única saída para continuar a competir ao mais alto nível.

A I Liga arranca esta noite, com o dérbi minhoto entre Sporting de Braga e Famalicão. Há investimento estrangeiro por trás de ambos, um cenário que, silenciosamente, de ano para ano, está a tomar conta e transformar o futebol português.

Os casos mais recentes na primeira divisão são do Vitória de Guimarães (24% da SAD foi comprada pela empresa americana VSports, dona do Aston Villa) e o Sporting de Braga (21% da SAD adquirida pelo fundo de investimento do Qatar, que detém o Paris Saint-Germain).

Este sistema é o oposto do associativismo tradicional, em que os sócios são os donos do clube e decidem o seu rumo através de uma direção eleita.

O Paços de Ferreira continua a ser um dos últimos redutos onde os sócios têm, verdadeiramente, a palavra; e, principalmente, a decisão. Mas o modelo está em vias de extinção.

“Podemos resistir até ao limite das capacidades, mas acho que o futebol caminhou para algo que deixou de ser desporto e passou a ser uma indústria. Começa a ser difícil resistir e encontrar soluções para sustentabilizar o clube”, aponta o presidente, Paulo Meneses, à Renascença.


Quando a maioria dos clubes passa a pagar pela transferência de jogadores e aumenta consideravelmente os salários oferecidos, Paços de Ferreira e outros com estruturas semelhantes têm cada vez mais dificuldades em manter-se competitivos.

Apenas dois anos depois de receber o Tottenham nas provas europeias, o Paços desceu à II Liga. Numa prova em que os candidatos à subida se renovam de época para época, vários clubes investem muito.

“Tenho mais dificuldades em fechar contratos na II Liga do que no ano passado na primeira divisão”, assume Paulo Meneses.

Vejo clubes a oferecer oito ou nove mil euros líquidos a jogadores. No limite, o Paços oferece três ou três e meio. Este ano, já vi contratos superiores aos que via no ano passado na primeira divisão. As coisas cresceram exponencialmente só num ano. Não temos qualquer tipo de possibilidade e, mesmo se estivéssemos na I Liga, não era possível competirmos sequer com estes ordenados da segunda.”

Paulo Meneses alerta para “um mercado livre para exageros” e para o risco que os clubes correm de “se tornarem meros veículos para fundos”, que se “aproveitam da existência de um clube para alcançar objetivos”.


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"Mesmo que o Paços estivesse na I Liga, não era possível competirmos com os atuais ordenados que se oferecem na II Liga"

Quem investe em Portugal?


Os casos de Sporting de Braga e Vitória Sport Clube são só os mais recentes, mas fundos e empresas já investem nos clubes portugueses há vários anos e chegam um pouco de todo o mundo.

Fundos de investimento americanos compraram as Sociedades Anónimas Desportivas (SAD) de Estoril (MSP Sports Capital), Casa Pia (MSD Capital) e Estrela da Amadora (My Football Club).

O Famalicão tem um dono israelita, Idan Ofer, enquanto o brasileiro Theodoro Fonseca é o proprietário da SAD do Portimonense.

O Vizela - que subiu do Campeonato de Portugal à I Liga em duas épocas - teve investimento de Hong Kong até ao ano passado. Entretanto, o fundo Seca Incorporated deu lugar a outro, da Malásia, com o nome de F. Karpia.

Já a empresa Joga Bonito, controlada pelo espanhol-luxemburguês Gérard Lopez e sediada em França, detém a maioria do capital social do Boavista.

Seis destes nove clubes não jogavam na I Liga à data da aquisição e o investimento externo permitiu alavancar o regresso.


Paços recebeu e venceu o Tottenham há dois anos, no "play-off" da Liga Conferência. Acabou por ser eliminado na segunda mão da eliminatória. Esta época jogará na II Liga. Foto: Reuters
Paços recebeu e venceu o Tottenham há dois anos, no "play-off" da Liga Conferência. Acabou por ser eliminado na segunda mão da eliminatória. Esta época jogará na II Liga. Foto: Reuters

Adaptar ou morrer


Em Famalicão, o capital estrangeiro não é novidade. Até 2018, as dificuldades financeiras não permitiam mais do que lutar para sobreviver na II Liga. A realidade não era compatível com as ambições da direção e dos sócios.

Para chegar à I Liga, o presidente de então, Jorge Silva, só via o caminho da entrada de uma empresa externa para gerir o futebol profissional.

“Tudo estava esticado ao máximo, não havia onde recorrer. O que queríamos só era possível com uma injeção de capital que nos permitiria dar um salto maior. Foi nesse momento que decidimos que era preciso encontrar alguém para fazer o caminho connosco", conta à Renascença.

Assim surgiu o Quantum Pacific Group. A empresa liderada por Idan Ofer, empresário israelita e também dono do Atlético de Madrid, adquiriu a maioria da SAD do Famalicão nesse verão.

Os resultados foram imediatos. O clube contratou jogadores mais caros - e melhores - e a subida à I Liga, por onde o Famalicão já não passava desde a década de 90, chegou logo no final da primeira época.

Em quatro épocas na I Liga, conseguiu terminar sempre no “top-10”, lutou pelo apuramento europeu e chegou a duas meias-finais da Taça de Portugal: “É importante encontrar bons parceiros. Se o espírito for mesmo apostar na indústria, esses clubes vão emergir e sobressair em relação a todos os outros."


Nas últimas quatro épocas, o Famalicão terminou no 6.º, 9.º e duas vezes no 8.º lugar da classificação. Atingiu duas meias-finais da Taça de Portugal. Foto: José Coelho/Lusa
Nas últimas quatro épocas, o Famalicão terminou no 6.º, 9.º e duas vezes no 8.º lugar da classificação. Atingiu duas meias-finais da Taça de Portugal. Foto: José Coelho/Lusa

Portugal não é pioneiro neste tipo de investimento. Na Premier League inglesa, todos os clubes sem exceção têm proprietários e a influência do campeonato mais rico do mundo tem-se espalhado pela Europa. Por cá, alguns apontam como uma mera questão de tempo.

Vamos nós ser uma ilha e diferentes dos outros?", questiona Jorge Silva. "Há que fazer esta leitura e depois cada um toma as suas opções. Mas parece-me cada vez mais uma inevitabilidade.

Sócios perdem a voz


Quando a maioria da SAD é adquirida, o clube - e, por consequência, os sócios -, deixam de ter palavra ativa no rumo das operações. “Não é um risco, é uma factualidade”, explica o antigo presidente do Famalicão.

“É o lado que nos custa mais, foi como dar o meu filho para adoção. Custa muito, mas, a partir do momento em que o investidor detém a maioria do capital, naturalmente que lhe compete a ele fazer a gestão. Não podemos ter o melhor dos dois mundos, sol na eira e chuva no nabal. Não é possível. Temos de ter disponibilidade mental para perceber que, a partir daquele momento, as coisas não são como eram antes”, afirma Jorge Silva.

Paulo Meneses discorda que só existam essas duas vias. O dirigente imagina um Paços adaptado a esta realidade, mas sem que o clube perca a voz nas decisões.

Isso é possível com aquilo que chama de uma “solução intermédia”: “Pergunto se o Braga, que é exemplarmente gerido, tem a maioria do capital social. Penso que não, mas tem o domínio completo e absoluto da SAD."

"É possível fazê-lo e teremos de o fazer encontrando um modelo adequado. Alguns clubes aceitam vender-se na globalidade, mas não há só esse caminho. Ninguém investe cegamente, mas pode investir e acreditar na estrutura, na gestão e na história. É possível ter o domínio dos estatutos da SAD e que barrem qualquer tomada de assalto, que bloqueie mecanismos de abusos da SAD perante o clube”, prevê.


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“Vamos nós ser uma ilha e diferentes dos outros países?", questiona o antigo presidente do Famalicão

Aves deixado ao abandono


Muitos clubes portugueses aceitam a entrada de investimentos em situações de desespero. A direção do Paços gostaria de ver os sócios a debater o assunto com tempo, de forma a evitar esse cenário.

“O que defendo é que se o Paços quiser mudar que o faça antes de ter necessidade. Em momento de estrangulamento, não teremos capacidade negocial. É importante ter capacidade de antecipação, porque o futebol está em mudança”, atira.

O caso do Famalicão é, até à data, de grande sucesso e Jorge Silva não encontrará muitos sócios arrependidos. Mas outros viram os seus clubes a cair no abismo de ilegalidades financeiras. Em último caso, quem paga a fatura são sempre os clubes e os seus sócios.

Com a “corda na garganta”, o Desportivo das Aves avançou para a venda da SAD em 2015. A maioria do capital ficou nas mãos da empresa “Galaxy Believers”, de origem chinesa.

António Freitas é um nome histórico nas Aves. Foi presidente em quatro momentos diferentes, mas apenas acompanhou a transição da SAD enquanto sócio. Com a experiência que lhe é reconhecida, recorda o processo com grande desconfiança.


Aves jogou pela última vez nos campeonatos profissionais em 2019/20. Regressa esta época à II Liga com o nome de AVS SAD.  Foto: Octávio Passos/Lusa
Aves jogou pela última vez nos campeonatos profissionais em 2019/20. Regressa esta época à II Liga com o nome de AVS SAD. Foto: Octávio Passos/Lusa

“Estive nas assembleias e não gostei dos termos em que foi feito, pressentia que as coisas poderiam correr menos bem. Como é possível um clube de uma vila ter o quinto maior orçamento? Era impossível, teria de 'dar raia', como deu. Tivemos jogadores a ganhar 50 mil euros, como é que isso é possível?”, lamenta.

O clube chegou à I Liga em 2017 e por lá ficou durante três temporadas. O Aves conseguiu até conquistar uma Taça de Portugal, no ano seguinte, frente ao Sporting, o que "ajudou a encobrir muita coisa", recorda o ex-dirigente.

Os problemas foram aparecendo e rapidamente se tornaram públicos. A SAD fechou portas no fim da época 2019/20, depois de ter chegado às manchetes dos jornais.

Com vários ordenados em atraso, mais de metade do plantel rescindiu contrato ainda antes da época terminar. Só a entrada de António Freitas no clube assegurou que as últimas jornadas frente ao Portimonense e Benfica se realizassem.

Havia desvios e negócios mal feitos, tentaram salvar-se a eles mesmos e o clube foi ficando para trás. A SAD dizia que ia continuar, já tinha campo onde jogar, mas foi um chorrilho de mentiras. Senti-me triste, ando no futebol há muitos anos, vi-me com o menino nas mãos e tive de começar tudo do princípio, à pressa. Fomos para os distritais”, conta.

O Desportivo das Aves recomeçou no distrital com novo nome: Aves 1930. No entanto, viu-se impedido de inscrever jogadores pela FIFA devido à "monstruosa dívida" da SAD, a rondar os 16 milhões de euros.

Este verão, surgiu uma oportunidade para o clube regressar aos campeonatos profissionais.

Sem possibilidade de jogar em Vila Franca de Xira e em colisão com a Câmara Municipal, a SAD do Vilafranquense decidiu vender a sua vaga na II Liga. O Aves foi abordado e, "condenado a fechar", decidiu aceitar a proposta.

"Era a única solução que o Aves tinha", afirma António Freitas, que era o presidente à data da transição. O Vilafranquense clube terá de seguir o mesmo caminho do Aves em 2020: recomeçar na última divisão distrital da Associação de Futebol de Lisboa.


Olhanense obrigado a parar


No sul do país, um dos clubes com mais história do Algarve está encostado à parede e não conseguiu encontrar uma solução como o Aves.

Formar uma equipa sénior pode implicar (ainda mais) o Olhanense nas dívidas de uma SAD na iminência de declarar insolvência.

A SAD do Olhanense foi comprada em 2013 com dinheiro de origem italiana. Na altura, o clube jogava na I Liga. Entre sucessivos insucessos desportivos e o acumular de dívidas, os algarvios foram descendo divisões e caíram, por último e pela primeira vez na história, aos campeonatos distritais.

Manuel Cajuda não é um nome estranho para quem acompanha futebol em Portugal. O histórico treinador não conseguia mais assistir, à distância, aos problemas do seu clube. Com 72 anos, aceitou o desafio dos sócios e tornou-se presidente do clube onde já tinha sido jogador e treinador.

“Estragaram isto tudo. Nasci aqui, fui jogador, treinador e agora presidente. Há poucos dias perguntaram-me se era a cadeira de sonho e eu disse que não. É a cadeira da realidade. Dói a mim e a todos os olhanenses. Temos de encarar a realidade, não interessa chorar e colocar a cabeça debaixo da areia”, assume à Renascença.


Manuel Cajuda regressou ao Olhanense para uma terceira função. Depois de jogador e treinador, é agora o presidente. Foto: DR
Manuel Cajuda regressou ao Olhanense para uma terceira função. Depois de jogador e treinador, é agora o presidente. Foto: DR

O clube foi despromovido do Campeonato de Portugal, mas na verdade não vai poder sequer participar nas competições seniores da AF Algarve. Em causa está o mesmo problema do Aves: as dívidas da SAD:

Não estamos impedidos, mas, se inscrevermos uma equipa sénior, corremos o risco de ser sucessores da SAD. Não conseguimos obter certidões e apoios camarários. Por inerência, as dívidas estão ligadas. É uma agonia enorme."

Cajuda, que não se confessa “contra investimentos de fora”, mas apenas “contra os maus investimentos de fora”, não prevê que o Olhanense volte aos relvados com uma equipa sénior nos próximos anos.

“Não podemos entrar mais nesta farsa de sermos responsáveis por atos que nada têm a ver com o clube. Estamos à espera que a SAD tome uma decisão: ou pede insolvência, ou pedirão os credores. Mas qualquer pedido levará muito tempo e serão uns três ou quatro anos até libertar”, prevê.

Com a experiência de mais de 500 jogos na I Liga e passagens por clubes como Braga, Belenenses, Marítimo e Vitória, Cajuda já não imagina outro caminho a não ser reerguer o histórico Olhanense.

“Não posso perder tempo com ‘coisinhas’. É esta a minha realidade, é daqui que tenho de partir e não ter vergonha de começar do zero. Os melhores anos da minha vida são os que tenho para viver e espero que os do Olhanense sejam os mesmos, para a frente. E o património é enorme, mora um campeão nacional em Olhão, coisa que a grande maioria dos clubes não pode dizer”, recorda.


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Manuel Cajuda: "Não tenho vergonha de começar do zero"

Hegemonia dos grandes ameaçada


A entrada de capital mudou o rumo do futebol europeu e criou novos campeões. O Manchester City passou de um clube de menor dimensão, eternamente na sombra do vizinho United, para uma hegemonia no campeonato mais disputado do mundo. Tudo como consequência do investimento multimilionário dos Emirados Árabes Unidos.

Do outro lado do Canal da Mancha, o dinheiro do Qatar tomou conta do Paris Saint-Germain que, rapidamente, o tornou num crónico vencedor da Ligue 1. O mesmo repete-se em vários campeonatos. Com maior ou menor influência, maior ou menor investimento.


O mesmo pode acontecer em Portugal. Tirando a conquista do Boavista, em 2001, Porto, Benfica e Sporting venceram todos os campeonatos dos últimos 70 anos, mas o cenário pode mudar a médio prazo.

“O Paços não, mas um Vitória ou Braga podem encurtar distâncias na discussão pelo título e o Braga já tem feito isso com recursos internos”, alerta Paulo Meneses, do Paços de Ferreira.

“Se tiverem capacidades financeiras para captar jogadores que vão ajudar, pode acontecer. O próprio Braga já compra e recusa-se a vender por valores que não considera justos. Isto só acontece porque há sustentabilidade e formas de financiamento que permitem essa ousadia. Com investidores é mais fácil, mas sem competência na gestão, não se vai lá”, completa.

quase dez anos que o Paços é confrontado com propostas para aquisição. É um clube sem passivo e com infraestruturas próprias e adaptadas ao futebol moderno.

Quer a decisão seja permitir a entrada de um investidor ou manter o modelo de associativismo, serão sempre os sócios do Paços a tomá-la. Mesmo que isso possa condenar o clube a um futuro longe da I Liga.

“É preciso abrir essa discussão com tempo. Os sócios têm toda a legitimidade para dizer que é para manter nesta estrutura, nem que seja preciso jogar na Liga 3. É legítimo que se pense assim, mesmo que possamos estar mais dez ou 20 anos nos campeonatos profissionais”, conclui.


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