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​Paul Auster em Lisboa. “As instituições americanas parecem de granito, mas são de sabão”

11 set, 2017 - 22:12 • Dina Soares

Escritor anda em digressão a apresentar o seu novo romance “4 3 2 1”. Em conversa com os jornalistas portugueses, analisou a chegada de Donald Trump ao poder e deixou um aviso: "é preciso estar vigilante senão a democracia morre".

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Paul Auster espera que a eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos tenha servido de lição aos americanos para não voltarem a olhar para a sua democracia como um dado adquirido. O escritor americano, que se encontra em Portugal para o lançamento do seu mais recente romance “4 3 2 1”, está muito preocupado com o futuro da democracia na América, temendo mesmo que as instituições não consigam travar o Presidente.

Paul Auster nunca se rendeu ao autoritarismo. Não vira as costas à luta, não compactua com regimes que proíbem a liberdade de expressão e aproveita todas as ocasiões para denunciar os atropelos que se estão a viver no seu próprio país. Os movimentos de resistência que surgiram após a eleição de Donald Trump são para ele grande motivo de satisfação, mas teme que, com o tempo, as pessoas acabem por se acomodar.

“É a primeira vez desde há 50 anos que as pessoas se estão a mobilizar. A vitória de Trump chocou os americanos que estavam contra ele e mostrou-lhes como estavam a ser complacentes, preguiçosos e desatentos. Agora começam a prestar atenção. Só espero que isto dure. Começou muito bem, espero que não esmoreça. O movimento ‘Occupy Wall Street’ também parecia que estava a crescer e, de repente, desapareceu.”

Para manter a resistência, Auster conta com uma imprensa livre e empenhada e, curiosamente, com o contributo do próprio Trump e das suas intervenções irracionais. “Ele é uma pessoa furiosa, irracional, instável, narcisista e perigosa que se alimenta de atenção. Tudo o que sai da boca dele é mentira, mas ele já percebeu que uma mentira repetida mil vezes passa a ser verdade. É a mesma técnica usada pelos nazis nos anos 30 e 40.”

Quanto às garantias que possam advir das restantes instituições americanas, o escritor está muito pessimista. “Os americanos sempre tiveram uma grande confiança nas suas instituições. Sempre olharam para elas como edifícios de granito, muito sólidos. Mas se Trump e os seus seguidores conseguirem fazer o que querem, que é atacar esses edifícios, podemos descobrir que afinal são feitos de sabão, que se começam a derreter.”

Há muitos apreciadores de líderes autoritários

Paul Auster vai ao ponto de temer pela própria democracia na América. “A democracia é algo que se constrói todos os dias, não é um dado adquirido, vai contra a maioria dos impulsos humanos. Muitas pessoas preferem que lhes digam o que fazer, gostam de líderes autoritários. É preciso estar vigilante senão a democracia morre, mesmo na América.”

Aliás – diz o escritor – há muitos sinais de que a sociedade americana é bem menos saudável do que parece e não só por causa da eleição de Trump. Lamenta que o racismo, que considera ser a maior vergonha da América juntamente com a chacina dos índios, continue a não ser tema nos Estados Unidos.

“O único país do mundo que nasceu de um conjunto de ideias, permitiu a escravatura durante muitos anos e ainda não assumiu essa herança nem a exorcizou. Por exemplo, não é ensinada às crianças nas escolas nem existe um museu da escravatura nos Estados Unidos. Até a Alemanha tem um Museu do Holocausto.”

“50% dos votos não deviam chegar para mudar o destino de um país”

Paul Auster está na Europa há um mês para lançar o seu novo livro. Até agora, visitou sete países. A Grã-Bretanha foi o que mais o desiludiu. “Foi muito triste e desmoralizante para mim ver a Grã-Bretanha sair da União Europeia. É um sinal do caminho que a Europa está a levar. Não percebo como é que um referendo pode ser válido com 50% mais um. Para mudar o destino de um país, deveriam ser precisos pelo menos dois terços dos votos.”

Quanto à popularidade dos movimentos de extrema-direita em alguns países europeus, o escritor considera que “o que está a provocar todos estes acontecimentos é o medo. Medo dos imigrantes, dos negros, dos árabes, dos refugiados que estão a ficar com os nossos empregos, que afinal são empregos que os europeus não querem fazer.”

Faz a comparação com o que se está a passar na América. “É o mesmo. Se corressem com os emigrantes ilegais, os hotéis, restaurantes, lares, nada disso funcionaria. A Europa está a atravessar grandes mudanças e os Estados Unidos também. É um fenómeno global que, infelizmente se pode comparar ao que sucedeu nos anos de 1930, já que muitos destes movimentos também se baseiam na desumanização de certos grupos da sociedade.”

“4 3 2 1” não é uma autobiografia

Paul Auster está em Portugal para lançar o seu romance mais recente “4 3 2 1”, a história de um rapaz que se desdobra em quatro, ou de como o acaso pode mudar definitivamente o destino de uma pessoa.

“Não é uma história autobiográfica. Ele é parecido comigo, mas, ao mesmo tempo, é muito diferente. Além disso, ele é quatro e eu sou só um. A única história tirada directamente da minha vida é a de um jogo de basquete. Claro que há aspectos da minha vida, há sempre. Por exemplo, o apartamento dos avós maternos dele corresponde ao apartamento dos meus avós em West 58th Street. Um deles vai para Columbia e eu também lá andei, mas ele escreve no jornal da universidade e eu nunca escrevi.”

Neste momento a trabalhar numa obra de não-ficção e a preparar o lançamento de um livro de conversas com um especialista na sua obra, com o título “A Life in Words”, Paul Auster rejeita que “4 3 2 1” seja o seu testamento literário. Diz que ainda está em processo de desintoxicação deste livro, com perto de 900 páginas, mas confessa que já há uma nova história a bailar na sua cabeça.

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