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Entrevista

Refugiados. Turquia diz que ainda só recebeu um terço do dinheiro previsto no acordo com UE

04 jul, 2017 - 14:34 • Catarina Santos

O director-geral para os Assuntos Consulares da Turquia, na área de Imigração e Assuntos Humanitários, sublinha que o acordo que travou as mortes no mar Egeu "foi uma iniciativa turca, não foi imposto pela União Europeia".

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Recusa-se a validar a tese de que a União Europeia (UE) encontrou uma forma de lavar as mãos de uma parte da crise de refugiados ao assinar um pacto com a Turquia, em Março de 2016, e sustenta que "o acordo foi uma iniciativa turca, não foi imposto pela UE".

Em entrevista à Renascença, o director-geral para os Assuntos Consulares da Turquia, na área de Imigração e Assuntos Humanitários, Mehmet Samsar, defende que "a Turquia fez o que prometeu", colocando um travão nas travessias de migrantes pelo mar Egeu e parando as mortes que ali ocorriam. Agora, afirma, "a bola está do lado da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, para nos darem uma hipótese de termos a liberalização de vistos para os cidadãos turcos" – um dos pontos previstos no acordo.

Mehmet Samsar participou recentemente nas Conferências do Estoril, onde defendeu que a Europa acordou tarde para o drama dos refugiados. Garante que o seu país já gastou 26 mil milhões de dólares (quase 23 mil milhões de euros) no acolhimento de refugiados sírios e que ainda não recebeu a maior parte do apoio financeiro prometido pala UE.

A Turquia é o país que mais refugiados acolhe no mundo – são já mais de três milhões de sírios. Sobre os relatórios de organizações humanitárias que apontam para falta de condições de acolhimento, o embaixador responde que "os que vivem na Turquia têm os mesmos benefícios que os cidadãos turcos têm" e que as instituições europeias e das Nações Unidas têm pleno acesso aos campos, onde podem ver "o que está a ser feito e o que falta".

Que diagnóstico faz do estado do acordo entre a União Europeia (UE) e a Turquia, até este momento?

Em 2015, quando o número de sírios que atravessavam pelo mar Egeu aumentou e se registavam muitas perdas de vidas, decidimos aprovar um plano, juntamente com a UE. Em primeiro lugar, para parar as mortes no mar; em segundo lugar, para combater as redes de traficantes de seres humanos e em terceiro lugar para substituir a migração ilegal por uma migração legar e ordeira. Foi por isso que aprovámos um plano, que foi aceite a 18 de Março [de 2016], e que ainda está operacional. Estamos a receber migrantes de volta das ilhas do mar Egeu, que atravessaram depois de 18 de Março, e no lugar deles estamos a enviar sírios para serem recolocados legalmente em países europeus.

E está de boa saúde, esse acordo? Havia alguns pressupostos que deveriam ter sido cumpridos e que nunca foram, como a liberalização de vistos para os cidadãos turcos.

Por um lado, o nosso objectivo é controlar a imigração irregular. Em segundo lugar, enviarmos sírios de forma legal para os países europeus, obtermos a liberalização de vistos para os cidadãos turcos e recebermos 3 mil milhões de euros de contribuição para os sírios que vivem na Turquia. Pedimos aos países europeus que iniciassem um sistema de recolocação voluntária, o que significa que 18 mil sírios, inicialmente, e depois mais 56 mil devem viajar para a Europa.

De certa forma, fizemos a nossa parte. Parámos as mortes no mar, parámos as travessias pelo mar Egeu. Em Outubro de 2015, o número diário de travessias para as ilhas gregas era de 7 mil e agora os números são de 30 ou 20 chegadas por dia. É uma grande descida, por isso a Turquia fez o que prometeu e estamos à espera dos países europeus para obtermos as viagens sem necessidade de vistos para os cidadãos turcos. Creio que merecem. A Turquia é o único país candidato [a integrar a UE] que não beneficia da liberalização de vistos e acredito que é um direito dos nossos cidadãos poder ter essa possibilidade o mais rapidamente possível.

No último ano houve acusações de parte a parte. A UE argumenta que a Turquia não cumpriu alguns critérios, em questões humanitárias e nas leis antiterroristas turcas, por exemplo; e, por outro lado, o Presidente turco Recep Tayyip Erdogan disse repetidamente que poderia romper o acordo se nada fosse feito entretanto. Em que ponto estamos?

Há certos critérios que temos de cumprir para finalizar este plano [com vista à adesão à UE] que assinámos em 2013 e estamos prontos para o finalizar. Claro que a bola está do lado da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, para nos darem uma hipótese de termos a liberalização de vistos para os cidadãos turcos.

A Turquia é o país com mais refugiados no mundo. Têm cerca de 3 milhões. É possível receber estas pessoas em condições dignas?

Ao longo da história, a Turquia foi um porto de abrigo para cidadãos de muitas nacionalidades. Desde 1492, quando os judeus fugiram da Inquisição e vieram para a Turquia; durante a II Guerra Mundial, para os perseguidos pelos nazis, quando alguns judeus vieram para a Turquia; durante o período soviético, os tártaros da Crimeia vieram para a Turquia; depois, foram os curdos iraquianos que fugiram ao regime de Saddam [Hussein] na década de 1990.

A Turquia é tradicionalmente um país muito hospitaleiro e as pessoas têm simpatia pelos que precisam de ajuda. É por isso que acolhemos, agora, mais de 3 milhões de sírios. Todas as despesas são suportadas pelo governo turco. No total, já gastámos 26 mil milhões de dólares [quase 23 mil milhões de euros] nos últimos seis anos. E claro que vamos continuar a gastar. O objectivo principal é acabar com as causas principais do problema na Síria, depois o país deve ser reconstruído e as pessoas começarão a regressar e continuarão as suas vidas.

Os que vivem na Turquia têm os mesmos benefícios que os cidadãos turcos têm – acesso a educação, tratamentos médicos, o direito de trabalhar no mercado de trabalho turco – e não há distúrbios sociais entre os turcos e os sírios. O que é também muito importante.

Mesmo os que não estão em campos oficiais de refugiados – e são a maioria – têm acesso a esses benefícios?

Cerca de 10% estão a viver em 23 campos, localizados na fronteira com a Síria, e os restantes estão a viver em 81 províncias. Os que vivem em campos têm acesso a alimentação e outros bens, mas os que vivem nas cidades também têm acesso a tratamentos médicos gratuitos, acesso gratuito à escola, têm o direito de trabalhar oficialmente... As câmaras municipais e as organizações não governamentais (ONG) estão a prestar assistência a estas pessoas que vivem nas cidades. Os nossos governadores estão a trabalhar muito para responder às suas necessidades.

Como é que está a ser aplicado o dinheiro que foi transferido pela UE, ao abrigo do acordo (os 3 mil milhões de euros que já deveriam ter sido transferidos e os restantes 3 mil milhões que deverão ser até 2018)?

O dinheiro que a UE nos deveria dar vai directamente para responder às necessidades dos sírios. Não pedimos nada para o orçamento turco. Como lhe disse, estamos a ter muitas despesas, sobretudo com as escolas, com a renovação dos campos, com a produção de comida... Além disso, está a ser construído mais um hospital. O dinheiro que a UE transfere irá directamente para isto e está a decorrer como previsto. Claro que há atrasos nas transferências. Há mais de um ano que assinámos o acordo e, dos 3 mil milhões, recebemos até agora 811 milhões de euros. Ainda falta receber bastante.

Há quem veja este acordo como uma forma de a Europa impedir que os migrantes cheguem cá, lavando as mãos do problema e pagando à Turquia para o resolver. Concorda com esta visão?

Em primeiro lugar, o acordo foi uma iniciativa turca, não foi imposto pela UE. É por isso que este tipo de análise está errada, do meu ponto de vista. Acreditamos que devemos parar as mortes no mar, em primeiro lugar, e em segundo temos de travar as redes de tráfico humano, já que os migrantes estão vulneráveis à exploração, e em terceiro lugar vamos substituir a migração irregular por migração legal.

Tudo isto está, de certa forma, a ser bem sucedido, porque estamos a recolocar nos países europeus aqueles que queriam ir para lá viver, sobretudo os sírios. A recolocação é um processo com duas vias – ambos os lados têm de o pedir, tanto o país como as pessoas –, por isso não podemos forçar a ninguém a ir. Há uma lista organizada de acordo com os critérios de vulnerabilidade do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Estas pessoas precisam de ir para outro país e podem deslocar-se se os países europeus assim quiserem. Claro que isto não deve ser um processo de selecção discriminatória. Normalmente, os países estão dispostos a acolher os que têm mais educação ou os mais saudáveis, mas não podem. De acordo com os critérios do ACNUR, devem ser escolhidos aqueles que precisam de ser recolocados.

O que acontece aos que vêem os pedidos de asilo rejeitados nas ilhas gregas e são devolvidos à Turquia?

Os sírios estão sob protecção temporária na Turquia. Os que saíram do país depois de Setembro de 2015 e regressaram à Turquia estão a receber novamente o estatuto temporário de protecção, por isso beneficiam novamente dos mesmos direitos. Os afegãos e os iraquianos são avaliados caso a caso. Os que precisam podem candidatar-se a protecção internacional e, de acordo com as nossas leis, o tribunal decide se podem ter o estatuto ou não. É um processo similar ao que o ACNUR faz. O ACNUR não dá protecção internacional directamente aos afegãos e iraquianos, também avalia caso a caso, por isso seguimos o mesmo procedimento. Os que precisam, claro que beneficiam de protecção internacional.

Há relatórios de organizações humanitárias que denunciam falta de condições mínimas para receber estas pessoas na Turquia.

Eles beneficiam de todas as possibilidades na Turquia. Os que estão nos campos são frequentemente visitados pelo ACNUR e por alguns países europeus. Temos uma nova directriz desde Novembro do ano passado, se não me engano, que permite ao ACNUR e aos países europeus visitar os campos, por isso têm o direito de ver o que está a ser feito e o que falta. Mas até agora não recebemos nenhuma queixa destas organizações quanto à situação deles.

No acordo previa-se também o relançamento das negociações com vista a uma futura integração da Turquia na UE. Com tudo o que aconteceu neste último ano, este ainda é um objectivo prioritário para a Turquia?

A Turquia pediu há muito tempo para se tornar um membro de pleno direito da UE. Somos o único país candidato que não beneficia da liberalização dos vistos, ainda estamos em processo de conseguir a aprovação para a adesão e a nossa política é continuar a tentar obter a plena adesão, para benefício da Turquia.

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