28 jun, 2017 - 14:24 • Henrique Cunha
O presidente do Conselho Directivo do Centro de Estudos e Intervenção em Protecção Civil, Duarte Caldeira, critica a sucessão de relatórios que têm vindo a público sobre a actuação de diversas entidades no ataque às chamas em Pedrógão Grande.
Em entrevista à Renascença, Duarte Caldeira, que durante mais de 10 anos esteve à frente da Liga dos Bombeiros Portugueses e da Escola Nacional de Bombeiros, diz que os documentos podem vir a comprometer os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito que, entretanto, foi constituída no Parlamento para analisar a tragédia que assolou a região centro do país.
Duarte Caldeira espera, no entanto, que o apurar de responsabilidades chegue a conclusões concretas e que a morte de 64 pessoas não seja "em vão".
Leu o relatório conhecido esta quarta-feira, da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna. Que conclusões lhe chamam mais a atenção?
Já li o relatório da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna assim como li e analisei os restantes relatórios que têm sido disponibilizados nas últimas 48 horas. E é exactamente a esse propósito que eu começo por lhe dizer que tenho muitas dúvidas sobre esta estratégia comunicacional de divulgação em catadupa de relatórios diferenciados, de entidades diferenciadas. Além de não me parecer que seja um bom instrumento de esclarecimento da opinião pública de alguma maneira pelas contradições que evidenciam em relação a questões muito essenciais - como é a temática das comunicações nesta operação - só servirá para, numa primeira fase, dificultar o trabalho necessariamente sério, sereno, aprofundado, tecnicamente sustentado que a comissão que está em discussão no Parlamento irá ter que realizar.
Por outro lado, a confusão que estabelece nestas fitas de tempo diferenciadas e nas interpretações dadas para cada uma das fases, além de esclarecer, levanta ainda mais dúvidas sobre aquelas que já existiam anteriormente. Eu diria que este relatório vem, de alguma maneira, na mesma linha do relatório da empresa do SIRESP, mas em contradição em muitos domínios com o relatório apresentado pela Autoridade Nacional de Protecção Civil e ambos suscitam questões muito relevantes. Permita-me ficar com uma dúvida: todas as fitas de tempo reveladas omitem o período entre o início do incêndio e depois as 19h45 que é quando começa a referenciação das falhas do sistema de comunicação.
Um hiato de cinco horas?
Há aqui um hiato de cinco horas que, nestas matérias, todos o sabemos, são, no domínio da progressão de incêndios florestais, um período muito determinante e que até agora não se viu qualquer tipo de reflexão sobre este período. Esta é desde logo uma primeira questão, uma dúvida que surge e que à qual é necessário certamente acrescentar informação. Depois, outra questão muito relevante é que a empresa gestora do SIRESP informa ou alega que o conjunto de anomalias identificadas no sistema já tinha sido referenciado em relatórios anteriores desde 2014 e, sobretudo, no que se refere a alguns aspectos que todos sabemos que são muito importantes nos processos de comunicação, nomeadamente no que se refere a uma grande concentração de utilizadores, os grupos de conversação, a necessidade de reduzir o tempo de conversação e das chamadas, a disciplina de comunicações. A empresa alega um conjunto de questões que alegadamente estavam identificadas anteriormente e que, dentro da ideia de que é necessário aprender com esta catástrofe em honra dos 64 mortos, corrigir o que tiver que ser corrigido, não pode ser necessariamente esquecido. Se há informações e debilidades identificadas anteriormente isso também tem que ser equacionado e levado em consideração na análise que se está a fazer.
Há aqui uma ideia que me parece transversal quer ao relatório do SIRESP quer a este relatório da Secretaria-geral do Ministério da Administração Interna e que é o de colocar a Autoridade Nacional de Protecção Civil como o elo mais fraco. Aliás, o relatório agora conhecido diz que devia ter actuado mais cedo para precaver a situação.
Essa é, de facto, uma questão que me preocupa particularmente, porque se analisarmos estes dois relatórios há aqui uma preocupação de visar objectivamente a Autoridade Nacional de Proteção Civil. A Autoridade Nacional da Protecção Civil e a Secretaria-geral do Ministério da Administração Interna são duas entidades inseridas na mesma tutela, na mesma governação. Parece-me que seria cordial e adequado que articulassem entre si o que tivessem que articular, antes de tornar público contradições em relação a questões e matéria relevante. Se lermos com distanciamento a serenidade e o rigor que estas circunstâncias aconselham há aqui efectivamente uma classificação de elo mais fraco que este conjunto de relatórios atribui à Autoridade Nacional de Protecção Civil, o que acaba por ser um julgamento antecipado que não me parece nem muito justo nem muito adequado.
Outra questão que têm a ver com o conjunto de argumentos produzidos nas últimas 48 horas. Este conjunto de documentos em vez de esclarecer criou mais ruído?
Sem dúvida nenhuma. Aliás, a circunstância de entidades diferenciadas apresentarem versões - que são legítimas, porque são versões de cada um dos posicionamentos e de missão que têm em relação a esta matéria - tão contraditórias entre si e quase que assumidas numa perspectiva defensiva, o que não contribui para o cabal esclarecimento da situação e, portanto, introduz num processo que já, no meu ponto de vista, não se iniciou muito bem no que se refere à forma de informar a opinião pública. A informação pública é uma área e uma disciplina muito importantes dos sistemas de protecção civil em Portugal e isto vem apenas evidenciar uma coisa que eu digo e demonstro há muito tempo: o nosso sistema de Protecção Civil não tem uma estratégia de comunicação e de informação pública. Estamos aqui na presença de um jogo de versões que quase que colocadas numa perspectiva de autodefesa quando o que era normal que acontecesse era que, primeiro, fosse esclarecido, em sede de grupo de trabalho ou de inquérito, que não é para definir se é preciso ou não fazer uma reforma florestal, porque em relação a esta matéria já estão produzidos todos os inquéritos necessários, mas sim para identificar do ponto de vista operacional o que é que efectivamente falhou, porque alguma coisa seguramente falhou, mas identificar na precisão do tempo e do espaço para que efectivamente possa ser depois vertido para a correcção do sistema o que se tenha identificado que esteja ou a funcionar de uma maneira anómala ou a funcionar de uma forma deficiente.
De que forma é que estes relatórios podem vir a condicionar ou a contaminar a Comissão Independente no Parlamento?
Eu julgo que é um risco e é um risco por uma razão muito importante: estes relatórios são elaborados com a necessária incorporação técnica que cada entidade tem ao seu serviço e certamente que a comissão técnica, a comissão de inquérito independente que o Parlamento, tudo indica, irá aprovar será também necessariamente incluída por técnicos multidisciplinares e, portanto, alguém nesta questão vai ficar mal nesta situação. Se a comissão técnica vier a apurar que os relatórios divulgados, entretanto, ou parte deles têm cabimento alguém ficará em cheque com eles. Ou então vai contrariar na totalidade qualquer um dos relatórios e das entidades que os produziram. É uma forma que condiciona o início do trabalho de uma comissão que devia estar plenamente livre para poder realizar o seu trabalho.
Podemos estar aqui perante a fatalidade de quando chegarmos ao fim não termos conclusões concludentes e decisivas?
Nós estamos num estado de direito, estamos num país que é regulado por uma democracia representativa, onde, através de uma catástrofe, morreram 64 nossos concidadãos da forma mais estúpida que é imaginável. Nós estamos num país onde ainda ontem tivemos uma demonstração notável em que a comunidade se solidariza imediatamente perante a tragédia que se viveu. Eu considero que seria muito mau para o país do ponto de vista interno e externo que esta catástrofe não tivesse as devidas consequências do ponto de vista de avaliação, do ponto de vista da correção, do ponto de vista de mudar o que tiver que ser mudado. Eu não acredito que estes 64 mortos tenham morrido em vão.
Já foi convidado para fazer parte da comissão independente no parlamento?
Não, eu estou integrado no centro de estudos de intervenção e protecção civil. É aí que realizo a minha acção e a minha actividade de estudo. Tenho uma concepção muito própria da minha actividade, ou seja, eu não sacrifico a minha independência relativamente ao que quer que seja e se, evidentemente, essa questão se colocar, acima de tudo, a minha decisão terá que ser em função dos objectivos da comissão e dos meios que tiver para realizar o seu trabalho. Isso é muito determinante, qualquer que sejam as pessoas que vierem a integrar essa comissão e que vierem, portanto, a aceitar integrar-se na mesma.