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Grávida de nove meses foi às urgências. Dois dias depois, perdeu a bebé. "Não quero que outras mulheres passem por isso"

18 mar, 2024 - 23:00 • Fábio Monteiro

Há duas semanas, Pâmela Araújo foi às urgências do Hospital de Cascais com dores. As médicas garantiram-lhe que estava tudo bem. Dois dias depois, voltou com perdas de sangue. Então, o feto já estava morto. “Era como se metade do meu coração tivesse parado de bater junto com o dela.” Família queixa-se de negligência e vai processar. Hospital diz que profissionais "atuaram de acordo com os protocolos".

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O quarto da bebé estava pronto. O berço montado, o carrinho comprado, as primeiras roupas escolhidas. Havia um conjunto de vestido e sapatilhas cor-de-rosa da Minnie, oferecido por uns amigos portugueses, e outras “coisinhas” enviadas por familiares do Brasil, prontas a estrear.

A gravidez passara sem sobressaltos. A data prevista para o nascimento – quando se assinalavam as 40 semanas – era 4 de março, uma segunda-feira.

Como um despertador programado com nove meses de antecedência, nesse dia, por volta da hora de almoço, Pâmela Araújo, 26 anos, começou a sentir “contrações, dores”. E reparou que a bebé estava a mexer-se “muito pouco”. Filipe Sousa, o marido, ainda brincou e disse que talvez “ela” só quisesse dar um passeio de carro. “Sempre que a gente andava de carro, mexia muito.”

Por precaução, o casal acorreu ao Hospital de Cascais Dr. José de Almeida, onde a grávida era acompanhada. Filipe ficou à espera, Pâmela entrou sozinha.

Numa questão de minutos, fizeram-lhe uma cardiotocografia (CTG), e depois foi vista por duas médicas. “Aquela que me examinou estava em formação, em estágio, a outra ficou sempre sentada. Fez a ecografia, viu que tinha líquido [amniótico] suficiente, fez o exame do toque. Falou que não estava em trabalho de parto”, conta Pâmela à Renascença.

Entre pisar o Hospital de Cascais, ser vista e sair não passou mais de meia hora. “Foi muito rápido.” A imigrante brasileira, que mora na zona da Parede, Cascais, tinha uma consulta pré-natal marcada para 7 de março – quinta-feira –, agendada desde 15 de fevereiro, para o caso de ser necessário fazer a indução do parto.

Pâmela ainda perguntou: “É só isso? Está tudo bem? Posso ir embora?”

As médicas garantiram que “sim”. A grávida confiou, voltou para casa, apesar de ainda ter algumas dores. (O protocolo no SNS dita que se deve esperar até às 41 semanas para desencadear o parto, caso não esteja sinalizado nenhum fator de risco.)

Dois dias depois, 6 de março, Pâmela acordou bem-disposta. Como era hábito, foi dar uma caminhada “pela manhã”. Mas, entretanto, as contrações “começaram a aumentar”. Quando sentiu “um líquido sair, quente”, pensou: “A bolsa rompeu.” O relógio marcava 17h30, “bem na hora que o meu esposo chegou do trabalho”.

O casal pegou logo na mala para a maternidade, preparada de antemão. Estavam já a sair de casa quando Pâmela começou a sangrar. “A gente saiu feliz mesmo, não é? Feliz porque nós íamos voltar com ela nos braços.”

Mal chegou à triagem do Hospital de Cascais, Pâmela foi levada “imediatamente” para um gabinete médico, para fazer uma ecografia. “Já tinham noção do que estava a acontecer, acredito.” Na cara de “deceção” da médica, na “cara de que algo não está certo”, pressentiu algo.

“Ela só falou que não tinha boa notícia, que o coração não tinha batimento”.

A grávida entrou em choque. “Entrei em choro, comecei a gritar: ‘Vocês falaram que estava tudo bem. A minha filha. Vocês me mandaram embora’.”

ERS abre investigação

Pâmela não foi parar ao Hospital de Cascais por acaso. A imigrante brasileira, que mora em Portugal já há seis anos, trabalha desde fevereiro de 2019 como assistente operacional nas urgências nessa mesma instituição.

Conhecia as médicas que a atenderam? Apenas “de vista”.

A mãe da bebé – feto é o termo correto a nível legal, mas Pâmela não o usa – que nasceu morta às 40 semanas acredita que a sua história seria diferente se lhe tivessem induzido o parto logo na primeira vez que foi ao hospital. Por isso, vai processar o seu próprio local de trabalho por negligência.

O objetivo não é vingança, mas sim que o hospital reconheça o “erro”.

“Não quero que outras mulheres passem por isso. Uma coisa é você perder uma criança no início, ter um aborto espontâneo, que já é difícil. Outra coisa é você planear uma gravidez toda, chegar aos nove meses, o dia esperado. Você ir para o hospital achando que o seu filho vai nascer, e chegar lá e descobrir que por negligência deles a sua filha não está ali”, afirma.

Representado pelo advogado Pedro Proença, o casal irá avançar com dois processos: um cível e um criminal. O primeiro para “responsabilizar o hospital”. O segundo “para apurar quem errou”, conta David Assis à Renascença.

David (assim como a sua esposa) é amigo do casal e ia ser o padrinho da bebé. Nos últimos dias, foi uma das bases de apoio de Pâmela e Filipe.

“Não quero exatamente crucificar um médico que tenha cometido negligência. Não quero que os médicos, quando estão a atender uma grávida, tenham em mente que, se errarem, podem ter um processo. Mas que alguém – quando digo alguém, digo a tutela, o hospital em si, que é uma parceria público-privada – se responsabilize, e é esse o objetivo”, explica.

Pâmela está pronta para o que aí vem. Não tem medo “do que venha a acontecer”, de consequências, ao nível profissional, quando regressar ao trabalho. Está revoltada, quer justiça.

Não esquece que uma enfermeira (que a tinha atendido na primeira ida ao hospital) lhe pediu, já depois de saber que a bebé estava morta, para “esquecer, para não ficar remoendo, pelo que aconteceu na segunda-feira. Porque eu não era a primeira, que isso acontecia, que são coisas que acontecem”.

Nestas palavras, que podem ser lidas como um conselho empático, Pâmela ouviu uma admissão de culpa. “Sabem que foi erro deles. Fez-me perceber que eles têm a consciência de que poderiam ter feito mais por mim na segunda-feira. Carregam ali algum medo, alguma culpa”, diz.

E acrescenta: “Não deveriam mandar eu esquecer. Porque não tem como eu esquecer. Na segunda-feira, eu estive lá. A segunda-feira existiu. Está lá registado. Porque é que tenho de esquecer?”

Questionada pela Renascença sobre este caso, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) revelou ter aberto “um processo administrativo para avaliação dos factos”.

Em comunicado, após o caso de Pâmela ter vindo a público há duas semanas, o Hospital de Cascais assegurou que "todos os seus profissionais atuaram de acordo com os protocolos e práticas clínicas instituídos, de forma totalmente criteriosa, responsável e humanizada". Mas não prestou mais nenhum esclarecimento.

A Renascença questionou a instituição sobre o relatório médico da primeira ida às urgências, assim como sobre o resultado da autopsia ao feto, mas, até à hora de publicação deste artigo, não obteve resposta.

O nascimento

O coração da bebé parou de bater na quarta-feira, 6 de março. Mas Pâmela ainda teve de dar à luz.

Uma cesariana não era possível. O parto foi induzido. Foi preciso esperar, como com qualquer grávida, que a dilatação chegasse aos dez centímetros.

“Não tenho noção do tempo, não ficava assim olhando para o relógio. Mas foi um bom tempo, depois que me internaram. Não induziram logo. Fiquei ali esperando”, conta.

Confusa, em negação, a mulher de 26 anos ainda teve esperanças de que o destino pudesse ser emendado. “Queria que colocassem logo. Na minha cabeça iam colocar, ia ser rápido, ela ia nascer. Iam ter de reanimá-la.”

Não foi isso que aconteceu quando, quase 24 horas depois, nasceu a bebé morta. Uma experiência que “não tem explicação”, sublinha.

Por dentro, era como se metade do meu coração tivesse parado de bater junto com o dela, não é? Ter de passar por tudo e no final saber que ia pegar nela no colo e ela não ia chorar, não é? Só perguntava a Deus: porquê? Estar a passar por tudo aquilo e no final não ouvir o chorinho dela.”

À espera

Pâmela teve alta do hospital no sábado à tarde, 9 de março. Para evitar um novo choque no regresso a casa, David e a esposa foram lá antes fazer uma limpeza. Desmontaram o que puderam do quarto da bebé, guardaram decorações.

A mulher de 26 anos ficará em casa de licença de maternidade nos próximos 120 dias. Tentará “recuperar” energias, lutar pelo possível.

Como a bebé nasceu já sem vida, nunca existirá um registo de nascimento. Nem vai haver certidão de óbito. Em "juridiquês", diz-se que o “feto não criou personalidade jurídica”, lembra David.

Haverá, sim, um funeral. A cerimónia é algo de que o casal não abdica.

Pâmela aguarda pelo resultado da autópsia, e que depois lhe seja entregue a bebé. Ia chamar-se Louise.

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