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Entrevista

Arjun Appadurai: "Há mais banda larga na imaginação das pessoas do que pensamos"

02 dez, 2016 - 14:51 • Matilde Torres Pereira

Continua a acreditar que quando as pessoas se movimentam entre países “os seus mundos” crescem. À extrema-direita, resposta “assustadora” aos medos contemporâneos, defende que é preciso responder com “uma resposta melhor”. Entrevista a Arjun Appadurai, um dos maiores vultos do pensamento sobre a globalização.

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É um dos mais importantes investigadores do mundo na área dos estudos sobre a globalização. O antropólogo indiano Arjun Appadurai mostra-se preocupado com o ressurgimento dos nacionalismos na Europa e nos Estados Unidos, mas também na Índia, mas lembra que ainda há muita gente a admirar o projecto europeu – nomeadamente os milhares de migrantes que chegam às margens da Europa e os países dos Balcãs ou a Turquia que continuam a querer aderir à União.

A Renascença entrevistou Arjun Appadurai, que esteve em Lisboa como orador das cerimónias dos 25 anos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica.

Faz 20 anos desde a publicação de “Modernity at Large: Dimensões culturais da globalização” (Teorema). Os ‘fluxos culturais’, como os chamou, têm-se movimentado exponencialmente nestes anos turbulentos. Como reflectir sobre essas mudanças, ou seja, sobre os próprios processos da globalização?

Duas coisas grandes aconteceram nestas duas últimas décadas desde que o livro apareceu, que eu não sabia ver na altura. Uma é o crescimento dos mercados financeiros como o mecanismo central pelo qual o capitalismo opera no mundo. Isso era uma coisa muito pequena nos anos 1990 ou, pelo menos, parecia pequeno, mas agora o reino das transacções financeiras, a riqueza financeira, os instrumentos financeiros, as profissões financeiras, é muito grande; representa uma parte enorme da economia mundial e também cria formas muito novas em que a riqueza é distribuída e, em resultado, os empregos e a segurança económica são vividos por pessoas no mundo inteiro. Essa é uma grande mudança, e eu tenho tentado entender isso. Há cerca de um ano publiquei um pequeno livro sobre essa temática financeira na University of Chicago Press. Estou a tentar entender o que isso é.

O outro grande movimento que aconteceu, é claro, é marcado pelo ataque às Torres Gémeas em 2001 e a subsequente guerra global contra o terrorismo e as mudanças fizeram transitar da Al-Qaeda para o Estado Islâmico, a crise na Síria, e por aí fora. O Médio Oriente é agora uma parte muito importante do que está a moldar a política do mundo inteiro e de uma maneira que não era muito óbvia nos anos 1990.

Mesmo os académicos não poderiam ter adivinhado até que ponto iríamos para passar da Al Qaeda ao Estado Islâmico. Isso é realmente novo. O que aconteceu recentemente com a vitória de Trump, a ascensão dos movimentos de direita na Europa e noutras partes do mundo também não era óbvio na década de 90. Eu diria que estas são as grandes coisas que eu, e outros, que estávamos a tentar pensar sobre os fluxos globais e economia global, política e cultura global, temos de aceitar.

Há 10 anos parecia que a globalização era um processo imparável. Mas na era do Brexit, de Trump e da ascensão do nacionalismo de extrema-direita, é possível que a globalização sofra uma retirada, se não uma reversão?

Bem, acho que, certamente, há muitas reacções populistas contra a globalização, mas, se olhar de perto, acho que as pessoas querem inverter o processo de globalização, mas querem, de alguma forma, “have their cake and eat it too” (ter tudo ao mesmo tempo). Noutras palavras, querem estar no mundo, mas também ser os primeiros no mundo. Ou seja, colocar as suas nações em primeiro lugar. Estamos a ver um ressurgimento do nacionalismo, mas um nacionalismo que muitas pessoas, especialmente à direita, gostariam de colocar ao serviço da vitória no jogo global. Não inverter a globalização, mas melhorar a participação dos seus próprios países, por assim dizer. Isso é, naturalmente, uma questão muito complicada, porque não se pode ter um processo global de fluxo livre de capital financeiro e, ao mesmo tempo, ter todos os países como vencedores [risos]. Simplesmente não dá.

E as ideologias por trás disso ficam muito confusas e há mesmo que se confunda com ideias que derivam do pós-colonialismo, ideias que, há alguns anos, achávamos que não era possível articular em público...

Como os discursos de ódio? Essas coisas sempre existiram, mas acho que receberam uma espécie de licença nova na esfera pública. Certamente nos EUA, mas na Europa, e também em países como o meu, a Índia, onde agora é possível dizer coisas sobre os muçulmanos, por exemplo, que não se podiam dizer nem pensar há 30 ou 40 anos. Essas ideias estão cada vez mais cá fora.

É possível voltar a dar vida ao ideal europeu ou estamos no início de um tempo novo?

Ou mesmo o fim da Europa. A ideia de pertença à UE está evidentemente sob maior ameaça e mais stress. O Brexit foi o maior movimento nesse sentido, mas é evidente que há interesses nesse sentido em todo o lado. Mas ainda é importante notar que há um certo número de países, especialmente na Europa Oriental e na Europa Central, que querem entrar. A Turquia também não disse: “Nós não queremos isso”. Eles ainda estão a negociar para entrar na UE. Assim, acho que quando olhamos para todas essas pessoas que querem sair, esquecemos que há quem ainda queira entrar.

Além dos países que querem entrar, há também os migrantes vindos de outras partes do mundo que querem vir para a Europa, e não apenas para este ou aquele lugar, mas que gostam da ideia da Europa. Não há um caminho claro caminho no sentido da saída. Agora, coloca as atenções no que sobra das democracias liberais da Europa. A Alemanha, onde vivo, é o maior e mais importante exemplo, mas até certo ponto eu diria que Portugal, Espanha, Grécia são lugares onde ainda há uma política democrática viva. Há muita pressão sobre as pessoas com essa visão democrática liberal para tomarem as rédeas destas questões.

Em Portugal, o PS juntou-se a partidos da esquerda mais radical, que agora estão a ajudar a governar. Estes partidos criticam a Europa e o euro, mas querem, ao mesmo tempo, receber os migrantes e ter uma sociedade tão multicultural quanto possível.

Penso que é muito positivo e muito importante. Do meu ponto de vista, não é realmente possível manter democracias liberais a nível nacional na Europa e ainda querer sair da UE. Essas duas coisas estão juntas porque, afinal, quando os migrantes vêm, eles também devem continuar a ser livres. Isso significa liberdade para se mudar para outro lugar na Europa, por exemplo. Acho que é muito complicado estar a receber pessoas de outros lugares para logo a seguir simplesmente fechar-lhes as fronteiras.

Portugal será um dos únicos povos que chegaram a ter casamentos e colonizadores e colonizados na Índia, em Angola e em Moçambique. Temos muitas famílias da raça misturada.

Há uma ideia um pouco diferente de raça, nesse sentido, nos países do sul da Europa. Também é diferente, em alguns aspectos, nos países dos Balcãs, que tiveram uma exposição longa ao domínio otomano, muita mistura. Esses países, ex-países jugoslavos, mas também outros países como a Bulgária, Roménia, Kosovo, Macedónia – são todos locais de mistura. Nem sequer na sua imaginação se consideram países europeus de "brancos puros". Têm assim um certo investimento neste tipo de diversidade.

Entramos nos EUA, por exemplo, e não somos vistos como brancos. Na Europa somos, mas não nos Estados Unidos.

Aí está. Interessante.

Somos “latinos” ou algo do género.

Absolutamente. Esse é também um sentimento e a experiência das pessoas nos Balcãs. Definitivamente não se sentem como parte do “núcleo duro”. Estão de fora a olhar para dentro, de alguma forma, e isso lembra-nos que a Europa tem uma história muito contestada. O esforço para "branquear" a Europa é sempre complicado. Nunca é fácil. E agora, em lugares como a França, não se questiona se os franceses são brancos, mas há argelinos, marroquinos… De modo que, de alguma forma, essa pergunta não se vai embora.

Está-me a fazer lembrar esta nova expressão da moda na comunicação social, a pós-verdade. Essa ideia de que a Europa sempre foi branca é uma ideia falsa.

Sabe, tenho algum interesse nesse tema na investigação que estou a fazer agora – no modo como a Europa, historicamente, sempre teve um debate muito profundo sobre o que significa ser europeu. Para algumas pessoas, isso significa ser cristão, para alguns significa a herança grega, para alguns a herança romana, para outros é muito mais tarde, é o Renascimento e Humanismo, e para outros ainda é o Iluminismo. Todas essas ideias permanecem em jogo. A Europa está hoje a ter um debate muito antigo, mas de uma maneira nova. Desta vez, envolve o islão, o terrorismo, o Estado-Providência, o seu futuro, o euro... São coisas novas, mas a pergunta “O que é a Europa, quais são as suas fronteiras, qual é a sua identidade?” é muito antiga, e sempre contestada. E a competição continua. E a parada esta cada vez mais alta.

No seu último livro, “The Future as Cultural Fact” (O futuro como facto cultural), concentra-se em questões como a violência e o terror. Como é que os cidadãos deste mundo, que se está a tornar cada vez mais dividido e desconfiado, podem aprender a viver nele sem medo? Ainda vê uma possibilidade para uma "política de esperança", como descreve no livro?

Há muito tempo que não estávamos sob tanto stress e as forças que promovem a desconfiança, o ressentimento, o ódio e a raiva em relação às minorias, aos estranhos, estrangeiros estão a aumentar. Mas ainda há um papel muito importante para as instituições educativas e para os média.

Estou um pouco preocupado com esta ideia da “pós-verdade”, embora ache que há nela um certo objectivo. Mas prefiro dizer que é importante lembrar aos jovens, aos estudantes, ao público, que essas identidades sempre foram muito instáveis – europeus, brancos, etc.. Estão sempre em construção, sempre tiveram os limites muito difusos.

A consciência da natureza histórica dessas coisas é muito importante, tanto para os média como para a academia. Para manter a consciência do público desperta, e para que as pessoas não sejam ajudadas a pensar que certas coisas são naturais e eternas. Depois, de repente, sentem-se sob ameaça, porque apareceu alguém de outro lugar qualquer.

A verdade é que há sempre alguém a vir de algum lado, as pessoas sempre se misturaram. Racialmente, politicamente, culturalmente, esta lição é agora mais importante do que foi antes, e é isto que muitos dos regimes autoritários tentam apagar. Dizem, por exemplo, que a Índia foi sempre a Índia, a Índia é hindu, a Europa é cristã; claramente não é verdade, mas é muito persuasivo. A contramensagem também tem de ser persuasiva.

Em "The Future as Cultural Fact", o professor mergulha na sua própria cidade natal, Mumbai, e olha para as luta das pessoas que estão a tentar ter sucesso em condições muito adversas. A globalização ajudou países como a Índia a conseguirem maior desenvolvimento?

Sim e não. A parte do “não” é a mesma que em outras partes do mundo: o capitalismo neoliberal não tem avançado a causa da igualdade económica. Ainda temos muita pobreza, muita exclusão, um grande fosso. Essa é a parte "não".

A parte do "sim" é que a globalização aumentou a capacidade de pessoas muito pobres, moradores de favelas, por exemplo, se ligarem com pessoas em situações semelhantes noutros lugares. E permite envolverem-se com os média digitais, de modo que os seus problemas não permaneçam apenas locais – ligam-se aos problemas no Rio ou em Lagos, ou na Cidade do México. Esse tipo de activismo também tem sido fomentado pela globalização. Diria que é um resultado misto.

A internet pode ser uma plataforma muito positiva para a mudança, mas não será por vezes sobrestimada? Vimos que nos Estados Unidos, onde havia quem estava já a avançar com a publicação de livros sobre o governo de Hillary Clinton, houve pessoas que acordaram um dia muito surpreendidas com a eleição de Trump porque aquilo não era o que o Facebook lhe estava a dizer que ia acontecer.

É importante encontrar o equilíbrio certo no que toca à internet e até mesmo as redes sociais. Como em tudo, pode dar para os dois lados. Podem abrir os horizontes das pessoas, podem abrir a imaginação – mas também podem ajudar as pessoas a criar pequenas bolhas compostas por elas próprias, os seus amigos e os seus seguidores, como se isso fosse o mundo. Existe um duplo potencial forte nos média digitais e tem de ser gerido e usado com muito cuidado, caso contrário pode se tornar muito facilmente num instrumento de exclusão, ódio, ou um lugar de mobilização política do tipo errado, ou mesmo apenas um local onde você e seus amigos e seguidores criam um mundo inventado.

Quanto ao tema da migração, até que ponto diria que a globalização alterou as relações entre subjectividade, localidade, identificação política e imaginação social (conceitos que elaborou nos seus primeiros trabalhos)?

Acho que a globalização provocou uma coisa que ainda se mantém e que vi pela primeira vez quando escrevi o “Modernity at Large”, que é que as pessoas são capazes de múltiplas identificações. E são capazes de acrescentar identidades (a si próprias), sem terem de subtrair uma cada vez que adicionam outra, seja nacional, cultural, linguística ou mesmo religiosa. Há mais banda larga na imaginação das pessoas do que às vezes pensamos.

A globalização intensificou isso. O problema é que a globalização também intensificou o medo disso e a capacidade dos políticos de tentarem “purificar” as pessoas e dizerem "Não, você não é isso, é apenas isto", "se você é este, não pode ser aquele", “se você é hispânico, não pode ser americano” e assim por diante.

A migração é geralmente associada ao sofrimento - quando as pessoas saem não porque querem, mas porque sentem que têm de sair para sobreviver. Mas quando as pessoas se movimentam, mesmo em circunstâncias muito difíceis, os seus mundos expandem-se. Os seus mundos de imaginação, aspiração e esperança crescem. E isso é uma coisa boa.

Termino colocando-lhe uma pergunta que o professor se colocou a si próprio numa entrevista há cerca de 10 anos, com curiosidade para saber se já encontrou uma resposta para ela. Como é que caracteriza a natureza das mudanças nos processos de globalização? Estão em continuidade com as mudanças que as precederam, ou são rupturas, totais ou parciais?

Hoje penso que o mundo que eu analisei pela primeira vez no “Modernity at Large” já está connosco há 20 anos e o que estamos a ver é algo desafiador – que há uma espécie de expansão e encolhimento simultâneos na experiência que as pessoas têm do mundo.

A expansão acontece porque as pessoas estão a aprendeu mais sobre o mundo, seja através de viagens ou notícias ou dos média; o encolhimento aconteceu porque as pessoas também estão a ser incentivadas, especialmente pelos políticos de direita, a pensar muito localmente (no seu interesse, seu país, sua localidade, seu bairro, sua cidade, e o resto que vá para o inferno). Aí há uma espécie de encolhimento.

Essa combinação entre expansão e encolhimento é uma espécie de ruptura. No passado, mesmo quando as pessoas viviam em mundos ligeiramente limitados, todos esses mundos lentamente cresciam. Agora, eles vêem um crescimento e um encolhimento. O acordeão está a tocar nos dois sentidos, e isso também o torna analítica, ética e politicamente muito desafiador. Porque as pessoas têm de viver onde vivem, não podem viver no mundo todo ao mesmo tempo.

Ainda assim, continuo comprometido com a ideia de que saber mais sobre o mundo é sempre bom. Como converter isso numa vantagem para cada mundo local, para a política local e as suas ligações locais, este é um desafio não resolvido. Os políticos da direita estão a fornecer uma resposta muito assustadora, por isso temos de trabalhar em encontrar uma resposta ainda melhor [risos].

Comentários
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  • Maria Cascais
    02 dez, 2016 Cascais 21:37
    Matilde Torres Pereira, cumprimento-a pela belíssima entrevista, a tradução e o bom uso da língua portuguesa. Um tema fundamental para olharmos a floresta mais vezes e tentar compreender as aceleradas transformações a que estamos sujeitos como Humanidade. Obrigada.
  • Mario
    02 dez, 2016 Portugal 19:06
    Há muitos destes que se julgam mais papistas que o papa, Fala muito mas nem ele próprio percebe o que diz. Se tivesse algum bom senso e conhecimento saberia dos problemas que por lá existem entre indianos de diferentes religiões, se entre eles próprios não se entendem. como deveriam entender-se em mundos com raças e culturas diferentes, Por outro lado só mostra grande ignorância pois a Europa sempre foi Branca assim como a Ásia amarela, África negra e a América vermelha. Mas o correctamente politico deixa qualquer um vir para a comunicação social dizer o que supõe mostrando literalmente aquilo que não sabe, e desconhece. Mas estamos em " democracia " deixa lá o pardal falar sempre se sente importante.
  • j
    02 dez, 2016 al 18:08
    Então se ainda é melhor é melhor ficarmos pelas politicas de direita porque estes sustos são bons para evitarmos as tentativas de islamização do ocidente , essas sim verdadeiramente assustadoras.
  • António Pais
    02 dez, 2016 Lisboa 17:52
    Tem crescido a islamização... Este senhor é mais um de frases feitas pelo globalismo. Se se informasse, veria que os movimentos nacionalistas não são contra o movimento de pessoas, sim pela imposição de regras!

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