27 set, 2016 - 10:10 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Ao contrário do que se previa, o primeiro debate entre Hillary Clinton e Donald Trump decorreu de forma cordata, em tom moderado e contido.
Ambos os candidatos contribuíram para tal. Trump porque tem tentado ultimamente dar uma imagem presidencial, evitando a linguagem excessiva e as tiradas desbragadas. Hillary porque precisava de contrastar o seu estilo sereno e responsável com o estilo sanguinário do adversário.
Houve, claro, acusações mútuas, ironias, provocações, mas bastante menos do que se imaginava. Especialmente se tivermos em conta que o formato foi diferente dos anteriores, dando aos candidatos muito mais latitude para se confrontarem, replicarem e treplicarem. O moderador quase se anulou e nem por isso houve necessidade de “restaurar a ordem” - uma expressão cara a Trump.
A relativa serenidade com que decorreu talvez tenha contribuído para alguma frustração no público presente na Universidade de Hofstra e provavelmente ainda mais nos lares da América. Não será surpresa se as audiências televisivas registarem menos público do que os 100 milhões estimados, sobretudo na segunda metade do debate.
O confronto começou melhor para o candidato republicano, que esteve ao ataque nas questões económicas e foi mais eficaz em passar a sua mensagem. Mas ao longo do debate, Hillary foi ganhando ascendente e dominou nos restantes tópicos. Mais serena, adoptando por vezes um ar condescendente com a retórica tremendista de Trump, evidenciou claramente o seu maior domínio dos temas em discussão.
Embora uma sondagem da CNN tenha atribuído a vitória a Hillary, pode dizer-se que ambos os contendores falaram para os seus eleitorados e nessa medida ambos foram eficazes. É provável que nenhum deles tenha convencido os indecisos, ficando-se porventura pela consolidação das respectivas hostes e nessa medida talvez este primeiro debate não produza alterações significativas nas sondagens.
Os dois começaram por se cumprimentar sorrindo e Hillary marcou o tom logo na primeira intervenção ao dizer que era bom estar ali com Donald. Trump chamou-lhe por vezes "secretary Clinton", o tratamento mais respeitoso por que Hillary é tratada.
Mas a primeira parte do debate não lhe correu bem. As questões económicas permitiram a Trump desfiar o rol de desgraças em que alegadamente os Estados Unidos estão envolvidos. E Clinton não foi eficaz a contrariá-lo. Trump insistiu na perda de empregos como consequência dos acordos comerciais feitos com terceiros países, citando o México e a China, para proclamar que foram perdidos “25 milhões de postos de trabalho”.
“Os empregos fogem do país, estão a ser roubados”, disse o candidato, culpando o NAFTA (acordo de comércio livre com o México e o Canadá) e os políticos dos últimos 30 anos.
Hillary não foi capaz de citar os números recentes que dão conta da significativa melhoria da economia no ano passado e nos últimos oito anos da administração Obama. Disse que a economia tinha melhorado e preferiu falar do seu plano de aposta na renovação das infraestruturas, nas energias renováveis, no aumento do salário mínimo, nos pequenos negócios, na classe média e numa economia inclusiva em geral. Não citou sequer as estatísticas oficiais do desemprego, que se situa nos 4,9%.
Trump ironizou com o plano, dizendo que Hillary estava há 30 anos na política e só agora é que dizia ter soluções, responsabilizando “os políticos” pela situação do país. E contrastou o seu plano económico com o da adversária, falando na redução de impostos, na atracção do investimento e na criação de empregos, invocando Reagan várias vezes. O que permitiu a Hillary dizer que a chamada “trickle down economy” do tempo de Reagan tinha falhado. E que o plano de Trump levaria a um défice de triliões de dólares, além de só favorecer os ricos.
O multimilionário insistiu na questão dos acordos multilaterais de comércio, acusando Clinton de ter sido favorável ao TTP (celebrado com os países do Pacífico) e depois o ter criticado por razões eleitoralistas. Hillary ripostou que tinha discordado da versão final do acordo, o que permitiu a Trump perguntar-lhe se então a culpa era de Obama.
Esconder os impostos
O moderador perguntou então a Trump por que não revelava a sua declaração de impostos, algo inédito entre os candidatos presidenciais. A resposta foi a habitual: que não o fazia porque estava sob auditoria do fisco, mas fá-lo-ia quando ela terminasse. Mas pouco depois afirmou que revelaria os impostos quando Hillary revelasse os emails que apagou no seu servidor privado. Clinton não foi capaz de evidenciar a contradição em que o adversário acabava de cair.
No entanto, aproveitou bem a questão dos impostos. Afirmou que o fisco não proibia a divulgação da declaração mesmo quando estava sob auditoria e fez-se eco das suspeitas em torno do secretismo de Trump.
“Ele está a esconder alguma coisa. Talvez não seja tão rico quanto diz, talvez não dê tanto dinheiro para caridade nem para os veteranos como apregoa”, disse, acusando-o de não pagar imposto de rendimento federal.
Trump atalhou de imediato: “isso faz de mim inteligente”. Talvez vangloriar-se disso num debate visto por milhões de eleitores não tenha sido muito inteligente. Sobretudo porque Trump pretende conquistar o voto daqueles que vivem em más condições financeiras e que estão revoltados com as desigualdades. Mas Hillary mais uma vez não aproveitou a inabilidade do adversário.
Um tema em que Hillary marcou pontos foi na questão dos negócios de Trump, cujo alegado sucesso ele apresenta sempre como trunfo para ser presidente. Clinton invocou várias pessoas contratadas pelas empresas Trump que não foram pagas pelo trabalho feito. E lembrou que Trump teve seis falências. O multimilionário acusou-a de debitar “soundbites” e passou a elogiar as suas empresas, mais uma vez vangloriando-se de tirar proveito das leis para fazer dinheiro com as falências.
Discriminação racial
Se até aqui Hillary tinha estado na defensiva, com Trump mais agressivo e mais acutilante nas réplicas, quando se entrou em temas como a raça, a segurança e a defesa, Clinton esteve claramente a um nível superior.
Quando a questão do movimento “birther” (as dúvidas lançadas sobre o local de nascimento de Obama) surgiu, Hillary foi eficaz. O moderador lembrou que Trump tinha alimentado a ficção durante anos e Clinton associou essa atitude a um outro comportamento do multimilionário, recordando que ele foi processado duas vezes pelo Departamento de Justiça por discriminar negros no acesso e aluguer das suas propriedades.
Trump explorou a questão da insegurança traçando um quadro de violência generalizada no país. Lei e ordem foram as suas expressões recorrentes e citou várias vezes Chicago, a cidade de Obama, como o local onde foram mortas quatro mil pessoas desde que o presidente tomou posse. Falou de armas em mãos dos “tipos maus”, de gangs, e de criminosos, “muitos dos quais são imigrantes ilegais”, repetiu. A isto Hilary contrapôs que o crime está a descer.
Em questões de política externa, Hillary deu cartas, lembrando que o adversário tinha apelado à Rússia para espiar os Estados Unidos, enquanto Trump acusava Obama de ter perdido o controlo da situação no mundo e de ser o responsável pelo nascimento do auto-denominado Estado Islâmico (ISIS). “Criaram um vácuo com a forma como saíram do Iraque”, argumentou, defendendo de novo que deveriam ter controlado o petróleo para asfixiar financeiramente o ISIS.
Hillary lembrou então que a retirada das tropas do Iraque já estava prevista no acordo feito com Bagdad pelo presidente George W. Bush. E que o ISIS está em perda clara graças aos bombardeamentos, mas também às alianças feitas no terreno para o combater.
Polícias do mundo não!
A NATO serviu a Trump para insistir que os países aliados não pagam a “parte justa” pela defesa que os EUA lhes garantem e que a Aliança tem de fazer da luta antiterrorista a sua prioridade. Hillary explicou em que consistia o artigo 5º do tratado – o ataque a um membro é um ataque a todos – e lembrou que a única vez que foi invocado até hoje foi em solidariedade com os EUA no 11 de Setembro. Graças a ele construiu-se a coligação que interveio no Afeganistão e posteriormente no Iraque.
Trump voltou a reduzir a questão da NATO a um problema financeiro, reiterando que os EUA não podem continuar a pagar os custos de defender a Alemanha, o Japão e a Coreia sem maior contributo desses países. “Não podemos ser os polícias do Mundo”, proclamou.
Pacientemente, Hillary lembrou que “as palavras contam” sobretudo quando vêm de alguém que concorre a presidente. E reafirmou que os EUA honrarão os seus compromissos internacionais e defenderão sempre os seus aliados.
Trump classificou ainda o acordo com o Irão como um desastre, obrigando Hillary a perguntar-lhe que alternativa tinha. “Ir para a guerra? Bombardear?”, quis saber, elogiando o sucesso diplomático que permitiu desarmar o Irão do seu material nuclear.
O moderador teve ainda tempo para perguntar a Trump o que queria dizer quando afirmou que Hillary não tinha um “ar presidencial”. O multimilionário respondeu dizendo que ela não tinha a “estamina” necessária para negociar acordos com os outros países e fazê-los ceder à mesa. Hillary, muito segura, reagiu dizendo que ele tinha respondido ao lado, não falou do ar presidencial mas da estamina. E lembrou que tinha viajado por 138 países quando foi secretária de Estado, muitas vezes sem dormir, em fusos horários diversos, tinha deposto durante onze horas no Congresso no âmbito do inquérito a Benghazi e “agora Donald Trump vem falar de falta de estamina?”, ironizou.