08 set, 2016 - 21:22 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Exactamente a 19 dias do primeiro debate televisivo, Hillary Clinton e Donald Trump confrontaram-se indirectamente na televisão, naquilo que foi a primeira partilha do mesmo palco depois de ambos terem vencido as nomeações dos seus partidos.
Foi na quarta-feira à noite, madrugada em Portugal, que a NBC e o seu canal noticioso no cabo MSNBC juntaram os dois candidatos no mesmo espaço, mas para entrevistas separadas, feitas uma após a outra e moderadas pelo mesmo jornalista.
O tema era a defesa e a segurança do país e para o debater a NBC associou-se à organização dos veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão e escolheu como cenário o contra-torpedeiro da II Guerra Mundial “Intrepid”, estacionado há anos no rio Hudson, em Nova Iorque, e que funciona como um museu sobre a guerra.
O formato era o chamado “town hall meeting”, em que os entrevistados se submetem a perguntas da assistência, além das do moderador, naturalmente. Sendo que neste caso a assistência era constituída exclusivamente por veteranos de guerra, cujas perguntas incidiram sobre o tema do dia, mas também sobre os problemas com que se defrontam no seu dia-a-dia todos aqueles que vieram da guerra com problemas físicos ou psíquicos.
Este é um grupo social que geralmente os candidatos conservadores exaltam com veemência e a cujo voto apelam em nome de um alegado fervor patriótico e compromisso intransigente com as missões militares e com as Forças Armadas em geral, que acusam os candidatos liberais de não possuírem.
Não a tropas no terreno
Mas, curiosamente, as perguntas que a NBC seleccionou na audiência não espelharam a suposta tendência conservadora atribuída aos veteranos. Houve até uma veterana da Força Aérea que se declarou liberal e perguntou a Hillary Clinton que garantias lhe daria de não ser um “falcão” na Casa Branca.
O que deu oportunidade à candidata para garantir que o uso da força seria sempre um último recurso, porque enviar alguém para o combate é a decisão mais delicada de um presidente. Neste contexto, aliás, Hillary foi até mais veemente e assegurou que está fora de questão enviar tropas para a Síria. E para o Iraque “nunca mais”.
“Botas no terreno”, exceptuando alguns conselheiros militares que lá permanecem, está excluído para Clinton, que ficou assim publicamente vinculada a uma declaração que talvez se venha a revelar imprudente no futuro. Essa foi, pelo menos, a crítica feita por alguns militares no pós-entrevista.
Aliás, a iniciativa da NBC, denominada Comandante-em-Chefe, não correu bem para nenhum dos candidatos nem para o moderador. Só a assistência parece ter cumprido o papel que lhe estava atribuído.
Hillary esteve à defesa. Começou por ser confrontada com a questão dos emails e teve de repetir que foi um erro que não voltaria a cometer, embora relembrando que nenhum dos emails trocados no seu servidor privado tinha a menção de “confidencial” ou “secreto” no cabeçalho.
Erro foi igualmente o seu voto a favor da guerra no Iraque, com o qual disse ter aprendido, mas não elaborou sobre o assunto, pedindo para ser avaliada pela totalidade do que fez. E passou a enumerar várias medidas favoráveis aos veteranos.
Defendeu a intervenção na Líbia - “onde não perdemos um único americano” -, o acordo nuclear com o Irão, que tem de ser permanentemente verificado no terreno, e definiu a destruição do ISIS como “o principal objectivo” da sua presidência em termos de segurança.
Mais “sumarenta” foi a entrevista a Donald Trump que, como quase sempre quando fala de improviso, dá aos seus adversários matéria abundante para crítica.
Generais reduzidos a entulho
Quando solicitado a explicar por que acha que sabe mais sobre o autoproclamado Estado Islâmico (ISIS) do que os próprios generais – afirmação celebrizada em tempos num comício – Trump tentou corrigir o tiro dizendo que se referia aos generais sob o comando de Obama. “Obama reduziu os generais a entulho (“rubble”)”, disparou, numa tirada que suscitou a perplexidade de muitos militares (e não só) ouvidos no pós-debate.
Num crescendo de criticismo ao actual Presidente, Trump disse que Obama tinha cometido inúmeros erros porque não tinha seguido os conselhos dos vários serviços de informações americanos. Questionado sobre como sabia disso, respondeu que o tinha percebido quando teve “briefings” com os serviços de “intelligence”, já durante a campanha, pela forma como falaram com ele e até pela “linguagem corporal” usada. No final do debate, vários especialistas disseram que os serviços de “intelligence” são altamente profissionais e nunca deixariam perceber qualquer eventual discordância com o presidente durante um “briefing” com um candidato. Algo que seria muito grave e teria imediatas consequências dado o escrutínio cerrado a que estão sujeitos.
Sobre o combate ao ISIS, Trump reafirmou que tinha um plano para o destruir rapidamente, mas que não o divulgaria para não dar trunfos ao grupo terrorista… “Quero ser imprevisível!”, atirou, confessando aquilo que tem sido justamente uma das críticas mais constantes ao seu temperamento.
Reiterou também que o ISIS é um produto dos erros cometidos por Obama no Iraque porque “não controlou o petróleo”, o meio de financiamento dos jihadistas. Interrogado sobre como o faria caso fosse presidente, adiantou que deviam ser deixados no terreno batalhões especializados para tomar e controlar os poços de petróleo. “Temos de controlar o petróleo. Há anos que digo isto”, sintetizou.
A simpatia pelo presidente russo ficou também patente na entrevista. Repetiu que Putin é um líder melhor que Obama, elogiou a sua taxa de aprovação na Rússia, superior a 80%, disse que ele era respeitado no mundo e fez votos para que as relações bilaterais sejam boas.
Confrontado com factos como a invasão da Geórgia, a anexação da Crimeia, a ocupação do Leste da Ucrânia, as ameaças aos países bálticos, o apoio a Assad e ao Irão, respondeu que talvez a relação a estabelecer com ele o faça mudar de ideias. Aparentemente, Trump confia que os elogios mútuos acabem por dar frutos geopolíticos. “Quando ele me chama brilhante, aceito o elogio, ok?”, lançou ao moderador.
Uma arguta pergunta de uma veterana pareceu tê-lo surpreendido. “O que fará a um imigrante ilegal que queira alistar-se nas Forças Armadas? Expulsa-o à mesma?”. Trump considerou que essa era uma situação “muito especial” que merecia um tratamento diferente. Nesse caso, admitiu, o imigrante deve ser autorizado a permanecer no país e a ser legalizado. Foi talvez a única afirmação da noite que colheu elogios de todos os comentadores.
Quem não colheu elogios, mas sim muitas críticas, foi o moderador. Matt Lauer foi acusado pelos democratas de ter sido duro com Clinton e brando com Trump, mas também muitos jornalistas de renome o censuraram.
Essencialmente por duas razões. Numa entrevista de 30 minutos, Lauer perdeu 10 minutos com a questão dos emails de Hillary Clinton, assunto relevante, sem dúvida, mas que ocupou mais espaço do que qualquer outro e o obrigou a pressionar a candidata para ser telegráfica em questões como o Iraque e o Irão por… falta de tempo.
Depois porque deixou passar impune uma afirmação de Trump que é claramente uma mentira. Foi quando o candidato disse que tinha sido contra a invasão do Iraque em 2003. Há várias entrevistas de Trump a elogiar a intervenção e o comportamento dos militares no Iraque.
Ao não fazer o “fact checking” do candidato, Matt Lauer viu abater-se sobre si uma onda de criticismo. Nicholas Kristoff, do “New York Times”, chamou-lhe “um embaraço para o jornalismo”.
Mas a noite da NBC parece ter sido um embaraço para todos os envolvidos, excepto para os veteranos. No dia 26, a mesma NBC organiza o primeiro debate entre Hillary e Trump. As expectativas não podiam ser maiores.