05 ago, 2016 - 21:52 • Carolina Bico
António de Oliveira Salazar era o homem forte do regime, mas não interferiu na construção da ponte sobre o Tejo, garante o arquitecto Luís Ferreira Rodrigues. Em entrevista à Renascença, o autor do livro “A Ponte Inevitável” lamenta que a ligação entre Lisboa e Almada seja actualmente olhada apenas como um mero “objecto utilitário” e não como um símbolo do país.
Uma das curiosidades que Luís Ferreira Rodrigues descobriu no decurso da investigação que terminou em livro prende-se com o parco destaque que António de Oliveira Salazar teve no processo de construção.
“Salazar foi uma figura praticamente inexistente na construção da ponte. Às vezes, temos a ideia que ele estava permanentemente a ditar ordens quando na realidade tudo ficou entregue aos técnicos, engenheiros e ao Ministério das Obras Públicas”, explica.
O ditador não interferiu na construção, mas a ponte baptizada com o seu nome foi uma forma de afirmação do regime.
Em entrevista à Renascença, Luís Ferreira Rodrigues refere mesmo que “no Estado Novo, a inauguração de uma obra pública não era só a inauguração de uma obra pública, era a afirmação de um regime”.
“Convinha criar uma construção cénica para exaltar o regime. Por isso, foram decretados por Salazar três dias de festa, com recepções na Câmara de Lisboa, em Cascais e bailes nos bairros populares alfacinhas”, envolvendo a generalidade da população nas comemorações da inauguração da estrutura inspirada na ponte Golden Gate dos Estados Unidos.
Fazendo a ponte do passado para o presente, o autor lamenta que 50 anos depois, a construção tenha perdido força simbólica para dar lugar a uma vertente utilitária.
Luís Ferreira Rodrigues deixa um conselho: “No início, a ponte era vista como um empreendimento nacional. Actualmente, nós passámos a olhá-la como uma mera cópia da Golden Gate e um objecto utilitário de travessia. E isso deve mudar, temos de contemplar a ponte não só do ponto de utilitário, mas também simbólico e patrimonial”.
A ponte foi inaugurada a 6 de Agosto de 1966, cerca de seis meses antes do prazo previsto. Os trabalhos tinham começado quatro anos antes, a 5 de Novembro de 1962, envolvendo técnicos americanos especializados e também operários, electricistas e pintores portugueses. Daí que o autor do livro, natural do Barreiro, argumente que “a construção da obra constituiu uma espécie de escola de engenharia, porque muitos dos conhecimentos trazidos pelos americanos foram assimilados pelos trabalhadores portugueses”.
Na época, o gabinete da ponte sobre o Tejo estimou que poderiam morrer cerca de 60 trabalhadores na construção da ligação, “mas felizmente a previsão falhou”, refere Luís Ferreira Rodrigues.
De acordo com os dados disponibilizados pelo Governo no final da obra, perderam a vida cerca de uma dezena de operários, não havendo uma intenção deliberada do Estado em encobrir o número oficial de mortes, argumenta o arquitecto.
Mas as linhas desta história começam a ser escritas em 1876, quando o engenheiro português Miguel Pais apresenta o primeiro projecto de construção de uma ponte rudimentar em ferro, que ligasse Lisboa ao Montijo.
A ideia do engenheiro era aproveitar o impulso da Revolução Industrial e implementar uma ferrovia, pois o ferro estava a ganhar uma grande importância na construção civil.
Politicamente, a Europa estava a reconstruir-se depois das consequências gravosas de guerras. O desejo de melhorar as acessibilidades das cidades tornou-se um imperativo forte.
Contudo, durante os finais do século XIX, sempre se considerou que a construção de uma ponte suspensa entre Lisboa e a margem sul era uma ilusão. Entre a proposta de Miguel Pais e o início das obras passaram praticamente 90 anos.
Só mesmo em 1953 é equacionada a possibilidade de construção da ponte, na sequência da entrada em vigor, sob a direcção de Marcelo Caetano do II Plano de Fomento, documento com medidas destinadas ao investimento em infra-estruturas, que reservava fundos para as obras da ponte, que já foi atravessada por milhões de pessoas e que sábado comemora cinco décadas a ligar as duas margens do Tejo.
[Notícia corrigida às 9h48 de domingo]