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Magna Carta. A história de um tratado de paz que se tornou referência global

15 jun, 2015 - 09:00 • Raul Santos

A importância da Magna Carta decorre mais daquilo em que se transformou do que aquilo que representava quando foi assinada, há exactamente 800 anos. A tese é defendida, em entrevista à Renascença, por Maria João Branco, professora de História Medieval da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Nova de Lisboa.

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“A Magna Carta tem grande importância, não tanto pelo que foi em 1215, mas por aquilo em que se transformou, tal como acontece com muitos documentos”. A opinião é expressa em entrevista à Renascença por Maria João Branco, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

A docente de História Medieval lembra que acordos firmados entre rei e nobres, como é o caso da Magna Carta, eram comuns à época e também em Portugal as circunstâncias levaram, quatro anos antes, em 1211, o rei Afonso II a acordar as chamadas “Leis Gerais”.

Nesta entrevista em que sustenta que a Magna Carta não é mais do que um tratado de paz, assinado entre o rei de Inglaterra e os seus barões, Maria João Branco aponta também as causas que levaram a que o documento inglês se tornasse numa referência global e, para os ingleses, num objecto de culto.


Como se pode definir a Magna Carta?
A Magna Carta é um pergaminho grande, no qual está exarado um tratado de paz, firmado entre o rei João Sem Terra - João I de Inglaterra - e os seus barões, na sequência de uma série de derrotas que o rei tinha sofrido em França, contra os reis de França. Os seus barões aliaram-se numa liga que ameaçava o rei no seu próprio território.

Nesse tratado, fica estabelecido um conjunto de condições para que a paz possa ser efectivada. São condições que implicam um compromisso régio. Por exemplo, uma cláusula define que o rei nada decide sem que isso seja aprovado por um conselho de 25 dos seus barões. Assim, o rei passa a ter deveres para com os seus súbditos, comprometendo-se a respeitar os direitos da Igreja e também os direitos dos “homens livres”, expressão que ajudou a mitificar a Magna Carta, porque a expressão não se refere a todos os homens, obviamente, mas aos barões, aos nobres e àqueles que são livres nas suas cidades.

Hoje, o nosso conceito de homens livres é muito diferente, mas essa formulação tem feito com que a Magna Carta, que não é mais do que um tratado de paz e uma concessão de favores e privilégios entre vários poderes, acabe por ser um pouco mitificada como um documento no qual são exarados os direitos e liberdades dos homens em geral.

A Magna Carta sofreu mutações ao longo do tempo…
Sim. A Magna Carta não foi aplicada depois de ser assinada, porque, ao fim de três meses, as partes já estavam desavindas. Voltou a ser reemitida em 1216, em 1217, também, mas, na verdade, demorou mais de 30 anos até que fosse implementada e, quando isso ocorre, não o é com todas as cláusulas que tinham sido formuladas em 1215.

O documento é visto como uma fonte de consignação de liberdades, de direitos e de princípios que hoje são por nós encarados como fundamentais, mas não é nada disso que ela consigna na sua primeira formulação.

Naquela época, um rei não era absoluto?
Os reis não eram absolutos, nessa época, e, mesmo na época dita do reinado absoluto, é questionável se esses reis são absolutos. No entanto, estes reis precisam - em absoluto, isso sim – que os nobres os auxiliem, que estejam no lado deles, porque as conquistas são feitas com a nobreza, não contra a nobreza, e, neste caso, o rei João tinha alienado a nobreza e também a Igreja.

A tentativa régia de concentração de poderes que se verifica em Inglaterra e que resulta na contestação dos barões, levando a acordos, é um fenómeno que se verifica, à época, noutros pontos da Europa.

Também em Portugal?
Também em Portugal, com Afonso II, que, mal ascende ao trono, é de imediato contestado, desde logo, pelas suas irmãs, apoiadas pelo rei de Leão, que tinha casado com uma delas. Uma das primeiras coisas que Afonso II faz é algo semelhante ao que aconteceu com João I de Inglaterra: reúne a sua cúria – os grandes nobres e os grandes eclesiásticos – e faz as famosas Leis Gerais, em 1211. Afonso II procura criar uma lei estatutária, algo que na Idade Média não é muito habitual, porque é uma época em que o direito se aplica consoante as pessoas. Essa legislação de 1211 deveria ser aplicada a todos os súbditos sem distinção e previa muitas concessões. O nosso Alexandre Herculano ficou muito escandalizado ao estudar a legislação de 1211, alegando não se entender como tinha Afonso II feito tantas concessões à Igreja e à nobreza. Mas há concessões de parte a parte, há um compromisso entre os contraentes, porque, ao mesmo tempo, Afonso II afirma a sua capacidade de governar sobre os nobres.

Este tipo de documento, este tipo de pactos de paz de cariz ainda muito feudal é comum na época e têm ainda como traço comum o facto de, muitas vezes, não serem observados. A Magna Carta não foi aplicada no próprio tempo em que surgiu e no caso das Leis Gerais de 1211 pode quase dizer-se o mesmo, já que foi preciso esperar por Afonso III. Estes documentos surgem, normalmente, em ambientes de conflito, de rebelião. Servem para resolver os conflitos, mas é difícil serem efectivados na plenitude, no próprio tempo. Há também exemplos desse tipo em França.

O que explica, então, a “fama” da Magna Carta, a importância que adquiriu?
A Magna Carta tem grande importância, não tanto pelo que foi em 1215, mas por aquilo em que se transformou, tal como acontece com muitos documentos. Ela é vista como uma fonte de consignação de liberdades, de direitos e de princípios que hoje são por nós encarados como fundamentais, mas não é nada disso que ela consigna na sua primeira formulação. A Magna Carta é uma lei estatutária que define os princípios que devem regular a relação entre o rei, os nobres, os eclesiásticos e os homens livres das cidades e que vai sendo acrescentada, tornando-se comum que os reis de Inglaterra, rei a rei, a confirmem. Acabou por ser reemitida noutras circunstâncias, sempre em busca de uma estabilidade. Há um empolar do documento e os ingleses, que não têm um constituição formal como a maior parte dos Estados, baseiam-se na ideia de que a Magna Carta é um documento fundador, um documento-base dos princípios com que a sociedade ainda hoje se rege.

Tem algo de particularidade dos ingleses…
Também. E dos americanos. Em 1939, uma cópia da Magna Carta foi enviada para a exposição mundial de Nova Iorque e, depois, face à eclosão da II Grande Guerra, aí ficou, tendo isso ajudado a reforçar a visão da Magna Carta como como um monumento às liberdades individuais, levando-a a estar, até, na base de declarações de princípios como a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, o que é muito interessante, já que ela nasce para manter direitos de grupos favorecidos da sociedade do seu tempo. A própria ideia do conselho dos melhores do reino que se tem de pronunciar é, de algum modo, um primeiro elemento da instituição do parlamentarismo. Isso explica a veneração britânica à Magna Carta, um documento que, com o tempo, se vai convertendo, e que na contemporaneidade acaba por servir um conjunto de práticas e de princípios que ultrapassam a sua matriz original.

Uma última questão, algo marginal ao tema: quando se fala de João Sem Terra, ocorre-nos o universo de Robin dos Bosques. Essa narrativa não trata o rei João muito mal?
Sim, trata mal. Os historiadores mais próximos do tempo de João I eram mais benévolos do que historiadores posteriores, que passaram a ideia de um rei economicamente opressor, que cobrava impostos, de um rei invejoso, que pretendia o trono do irmão. A ficção à volta de Robin dos Bosques, a romantização desse personagem ajuda a isso. Ultimamente, o trabalho dos historiadores tem matizado essa ideia de “rei mau”. João I era, no fundo, um rei como os reis do seu tempo, que tentava concentrar mais poderes, reforçá-los. No caso, sem muito sucesso, até. Não sei se ele era um rei tão mau quanto fraco.

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