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De porto em porto até ao Porto. A história de um refugiado palestiniano em Portugal

20 jun, 2018 - 14:52

Manhal Al Shehabi é um refugiado de origem palestiniana que escapou à guerra da Síria. Já cruzou as fronteiras do Egito, da Grécia e do Líbano, mas foi em Portugal que encontrou o norte. Uma história de esperança e resiliência no Dia Mundial do Refugiado.

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"As pessoas não compreendem, porque não conseguem imaginar. Quando me perguntam como estou, eu reflito e lembro-me de tudo. Quero apenas deixar o tempo passar e cumprir as minhas obrigações. É assim que conseguimos viver. O problema não é Portugal, ou o Líbano, ou a Grécia. É tudo aquilo por que já passei. São seis anos a viver esta realidade. Tenho 25 anos, mas, se olharem bem para mim, é como se tivesse 60. Não consegui viver os anos da minha juventude, divertir-me, construir o meu futuro com serenidade. Andei este tempo todo - e continuo - a perseguir um bocadinho de luz. Tudo está escuro à minha volta, por isso, quando vejo a luz ao fundo, vou atrás dela.”

A luz não expõe as rugas que diz envergar. Talvez sejam daquelas marcas que o tempo resolve dissolver dentro da pele, como a erosão que vai moldando o fundo dos rios. Manhal Al Shehabi tem 25 anos, é casado e tem duas filhas. Estuda engenharia civil no Instituto Superior de Engenharia do Porto. Os dados biográficos e o sorriso tranquilo não contam tudo. "A minha história é longa”, avisa de imediato, já resignado à ideia de não ser ouvido.

Manhal está em Portugal há um ano e meio. Esteve sem documentos durante dois meses. Recebe 150 euros da Segurança Social. Às vezes, passa três noites seguidas sem dormir. Manhal Al Shehabi é um dos mais de 1.500 requerentes de asilo que já entraram em território nacional, desde 2015. Mas não é um número e a sua história não se esgota nas métricas precoces e infelizes dos seus 25 anos.

“Quando cheguei ao Cairo, não consegui encontrar nenhum país que me pudesse receber, nem por 24 ou 48 horas. Por isso, passei 10 dias no aeroporto. Depois, disseram-me que me iam prender, se não arranjasse uma solução. Alguns familiares que estavam no Líbano enviaram-me dinheiro para obter o visto. Acabei por conseguir. Consegui o visto para sete dias e voei para o Líbano. Passei lá sete dias legalmente e, depois, fiquei lá ilegalmente.”

É assim que se conta a história de Manhal Al Shehabi: através de avanços e recuos, caminhos estreitos, retrocessos e analepses dolorosas. Por isso, começa "in media res", nos 10 dias que o refugiado palestiniano passou a ver abraços a ganhar o formato de um avião, de asas abertas, a cortar a resistência do ar. Ainda nem tinha aterrado em Portugal e já conhecia o significado da saudade.

"Pagar tudo pela esperança"

“Eu sou um refugiado palestiniano, mas nasci na Síria. Nunca conheci a Palestina. Nasci como refugiado num campo para refugiados palestinianos. Na Síria, tinha uma vida normal, porque éramos tratados como os sírios, em direitos e responsabilidades. As únicas coisas mais problemáticas tinham que ver com a política: não podíamos votar para escolher um Presidente nem para o Parlamento. Era a lei.”

Depois da guerra, tudo mudou. Os permanentes ataques em Damasco, uma cidade no meio do conflito, trocaram a esperança juvenil pelo esgotamento sénior das oportunidades. “Inicialmente, sofremos bastantes massacres, porque o nosso território tinha mais de um milhão de pessoas. Houve muitas bombas, muitos ataques. Finalmente, tivemos de fugir. Não tínhamos escolha, porque a situação na Síria era muito má. Foi muito difícil, porque eu fiquei ferido e eu não podia mostrar que estava ferido, porque o Governo sírio não aceitava. Eles perguntavam se estávamos disponíveis e não podíamos recusar. Estive numa área atacada por bombas durante mais de oito meses. Não me conseguia mexer, não conseguia ir para outro lugar”, relata.

Al Shehabi faz parte da geração “mais afetada com a guerra na Síria, porque nós temos de servir o país como militares”. Os sonhos do estudante de engenharia da Universidade de Lataquia foram interrompidos pelo estrondo das bombas a cair perto demais. A Síria já não era um país que construía casas, pontes e monumentos. A Síria era um reino (des)governado pela destruição.

“Às vezes, a partir da nossa identificação, perguntam-nos de onde somos. Numa área de conflito, até a nossa identificação é perigosa. Não podia ir à faculdade, porque é noutra cidade e há 'checkpoints'. Além disso, nunca sabemos o que vai acontecer, porque as cidades estão destruídas por todos os lados. Não podia ir para Lataquia. Lataquia é uma cidade segura, mas o caminho é imprevisível, há bombas por todos os lados. Nos 'checkpoints', nunca se sabe, estamos sujeitos ao humor de quem nos revista. Se não gostarem de nós, podem levar-nos. E, ali, podemos desaparecer e ninguém sabe. Se a nossa família resolve perguntar por nós, exigem dinheiro para lhe darem informações, muitas vezes, falsas. Porque tudo o que os pais querem é alguma esperança. Se lhes derem uma pequena informação sobre os seus filhos, eles dão tudo à polícia: dinheiro, a casa, o carro... Às vezes, as pessoas pagam tudo por nada. Pela esperança.”

“A situação na Síria é mesmo inimaginável. É impossível de descrever”, conta Al Shehabi, e o sismo entre as suas mãos denuncia o tamanho do medo que sentia. Apesar de tudo, explica que deixar a Síria foi ainda mais difícil do que o tempo que lá passou.

"Às vezes, choro"

“Para onde quer me deslocasse, estava ilegal. Fui para o Egito e tentei entrar na universidade, mas não me deixaram. Queria continuar a estudar. Fui para o Líbano e estava ilegal lá. Depois, fui para Gaza, porque pensei que lá podia estudar e podia encontrar a minha namorada, que agora é minha mulher. Mas a situação em Gaza até é pior. Para qualquer lugar que ia, não podia ficar. Nenhum destes lugares nos permitia permanecer, trabalhar e viver uma vida normal. Afinal, fora da Síria, também é difícil porque não sabemos o que pode acontecer.”

Manhal Al Shehabi não tem passaporte, mas as linhas conturbadas da sua trajetória escrevem-se em e-mails para uma família dispersa e em lágrimas choradas em silêncio. “Sinto-me demasiado cansado, emocionalmente. Tenho alguns problemas psicológicos. Estou deprimido, estou muito cansado. Às vezes, choro. Tenho duas filhas e não quero que isto as afete, mas a mais velha já está afetada. Ela tem alguns problemas. Ela grita e não sabemos porquê. A gravidez da minha mulher foi um período conturbado, porque eu estava num país e ela noutro. Não podia vê-la. Não sei o que fazer, a minha família está toda espalhada por diferentes países, não nos podemos encontrar. Apenas falamos pela internet e isto já dura há seis anos, não é uma questão de dias. Passaram já seis anos desde que deixei a Síria.”

Seis anos. Seis anos de guerra, de almofada em almofada, sem sequer repousar a cabeça, de uma vida forasteira, sem bússola. Egito, Líbano, Grécia e Gaza abriram-lhe as fronteiras, sempre de braços cerrados, sufocando a liberdade.

"Fiquei a trabalhar no Líbano. Havia 'checkpoints', mas eu decorei o caminho para o trabalho, que não me obrigava a passar por eles. Não podia continuar lá, porque os meus direitos não eram assegurados. O que recebia não era nada perto do que eu fazia, porque não tenho permissão para trabalhar lá. E, como sou palestiniano, mesmo que estivesse legal, não poderia ter esta profissão [engenheiro] no Líbano. A lei apenas permite que nós tenhamos uma das 80 profissões aprovadas. Não podemos ser médicos, advogados, dentistas, taxistas. Podemos apenas fazer trabalhos como pintores, operários... Mesmo que tivéssemos estudado em Cambridge…"

De porto em porto, até ao Porto. Para ficar, talvez...

E Al Shehabi voou para Portugal, para o Porto, onde, diz, as pessoas são simpáticas e a esperança tomou a dimensão dos raios de sol que espreitam. “Quanto a ingressar na Universidade, não tive problemas. Nesse aspeto, estou muito grato a Portugal. Inicialmente, tentei inscrever-me na FEUP, mas não foi possível reconhecer o certificado do ensino secundário. Mas, depois, tentei fazê-lo no ISEP e aceitaram o documento. Eles receberam-me, foi-me atribuída uma bolsa de estudos da DGES. Eu estudo em português, mas faço os exames em inglês. Os meus professores ajudam-me imenso. Os meus colegas também nunca me negam ajuda quando tenho dúvidas”, salienta o jovem de origem palestiniana.

Manhal perdeu o Sul para ganhar o que o norteia. "Tenho planos para ficar em Portugal. Estou a estudar na faculdade e pretendo terminar o meu curso, trabalhar e conseguir a nacionalidade. Eu e a minha mulher estamos num conflito, porque ela quer estar com a família dela e eu quero ficar cá. Por isso, não sabemos o nosso futuro."

Voltar à Síria é um sonho longínquo, tão imenso que quase se consegue ver do espaço. O sorriso e a esperança de Al Shehabi têm o mesmo tamanho.

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