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​Um estranho “vapor de água”. Cheira mal, provoca irritações e suja tudo

23 mai, 2018 - 09:36 • Rosário Silva

Fábrica de azeites em Ferreira do Alentejo queima a matéria orgânica resultante da sua atividade.

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O dia era de céu limpo, mas a casa de Rosa Dimas estava imersa numa imensa neblina, mal cheirosa e a provocar irritação na garganta e olhos lacrimejantes. Com 56 anos, Rosa vive em frente da fábrica da AZPO - Azeites de Portugal, do outro lado da estrada, em Fortes, no concelho de Ferreira do Alentejo. Trata-se de uma fábrica de extração de óleo de bagaço de azeitona, a laborar desde 2009, depois de várias décadas ligada à industria do tomate.

Rosa é, também, a moradora mais afetada com os fumos e o cheiro agoniante que não poupa roupa e se cola ao corpo.

“Afeta tudo, eu própria hoje tenho o cabelo gorduroso do fumo”, aponta à nossa reportagem. “À noite quando me vou lavar fica uma nata escura ao de cima da banheira”, prossegue a moradora. Mas não é tudo: “As minhas árvores, olhe, está tudo negro, o ano passado não deram azeitona e este ano, provavelmente, vai acontecer o mesmo”, para além de na “minha horta ter-se perdido tudo”.

À Renascença, Rosa Dimas mostra-se destroçada. “Isto afeta-nos emocionalmente e psicologicamente”, desabafa.

É assim há nove anos, desde que a antiga fábrica de transformação de tomate passou a receber o bagaço de azeitona produzido nos novos lagares de azeite instalados na região. Sem possibilidade de ser depositado em aterro, a matéria orgânica tem que ser transformada em material de queima. A substância tem uma cor castanha e larga um pó que o vento se encarrega de espalhar por vários quilómetros, com os fumos que saem, abundantemente, das chaminés e que a empresa diz ser, apenas, vapor de água.

A justificação não convence Maria Luísa Laranjinha, uma outra moradora, de 76 anos, que relata à Renascença a sua experiência de “prisioneira” na própria casa: “É o cheiro e os fumos. Estou fechada em casa, dias e noites, nem as vizinhas eu vejo”, revela.

"Não gostava que a fábrica fechasse". Mas...

Situação semelhante vive Leontina Espada. Nasceu em Canhestros, a cinco quilómetros de Fortes, onde se fixou aos 15 anos. Recorda com carinho os tempos áureos da então fábrica de tomate que ajudou a erguer vida e vidas; da localidade e de famílias.

“A minha filha é da idade da fábrica, faz em Junho, 50 anos”, conta-nos Leontina, confessando uma “ligação sentimental” à unidade que não quer ver encerrada.

“Eu não gostava que a fábrica fechasse pois é um meio de trabalho e há muitos anos que aqui está”, diz-nos, acrescentando o seu desejo de continuar a querer “viver onde fui criada, com qualidade de vida”.

Leontina tem saudades do tempo em que podia abria a porta se casa sem receios. “A gente assomava-se à rua, eu tenho laranjeiras no quintal, e de manhã abria a porta e cheirava tão bem a flor de laranjeira, agora a gente abre a porta, se puder, e só cheira mal”.

Com o passar dos anos e sem sucesso nas tentativas de ver resolvido o problema, a população de Fortes, maioritariamente idosa, encontrou num grupo de cidadãos da região, o apoio que há muito esperava. A Plataforma Ambiental das Fortes foi criada para desenvolver várias iniciativas, umas das quais foi possível concretizar há poucos dias.

Dezenas de pessoas apresentaram queixas no Ministério Publico (MP) onde pedem que seja investigada a atividade da fábrica. Foram entregues 65 queixas, todas semelhantes, referindo a existência de indícios da prática do crime de poluição.

“Queremos que as entidades competentes venham ver o que se passa aqui, de forma séria, e que sejam feitas análises à qualidade do ar, à qualidade do solo e às águas”, explica Fátima Mourão, porta-voz da plataforma.

Fátima, que também mora na zona, diz que é necessário que sejam “dissipadas as dúvidas” que existem, uma vez que o “industrial continua a dizer que é só vapor de água, mas nós não acreditamos”.

“Pode ter vapor de água, mas há algo mais”, afiança a responsável que juntamente com outros elementos, querem levar esta “luta” até que seja possível encontrar uma solução que não coloque em causa direitos fundamentais.

Bloco de Esquerda pede intervenção do Estado

“Absolutamente inaceitável”, é assim que Catarina Martins qualifica a situação que se vive em Fortes e, por esse motivo, vai levar o assunto à Assembleia da República.

“Queremos que seja feito um estudo, não só sobre a qualidade ambiental, mas também sobre a saúde pública destas pessoas”, afirmou a deputada no final de uma visita que realizou à localidade.

À coordenadora do Bloco de Esquerda (BE) foi permitida uma visita às instalações da unidade fabril. “Garantiram-nos que vão alterar as chaminés”, revelou, e construir “um armazém para os resíduos”, que se encontram a céu aberto, “e com o vento se espalham por todo o lado”.

Para Catarina Martins, desta forma, a empresa está “a reconhecer que têm problemas”, sendo “essencial exigir que sejam cumpridas as regras para garantir a qualidade ambiental e a saúde pública desta população”.

Se as coisas não mudarem, a deputada defende a intervenção do Estado, sendo certo que “nenhuma fábrica pode laborar no país sem cumprir as regras”.

Nesta visita à fábrica de extração de óleo de bagaço de azeitona, a coordenadora do BE perguntou aos “representantes da empresa se viviam” ou “tinham casa” na localidade.

“Essa é a medida”, referiu. “O que não queremos para nós, não podemos querer para os outros”, e o que se deve exigir “é o cumprimento da lei”, ainda mais “num negócio que tem vindo a crescer”. Por outro lado, entende Catarina Martins, “não podemos trocar postos de trabalho por poluição”, atendendo a que a “tecnologia de hoje” permite conciliar “postos de trabalho e qualidade ambiental”.

“Cumpram-se as regras e não se ponham as populações sobre escolhas que são absurdas”, rematou.

Comentários
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  • MCosta
    18 mar, 2024 Lisboa 10:15
    Notícia de 2018. Bloco de esquerda a fazer promessas de resolução, sem saber no que se metia. 2024. Está tudo igual? Não. Ficou pior. Além de não se ter feito nada, agora estas fábricas aumentaram a produção e sem obrigações de melhor filtragem. Agora já se fala mais, pois chegou a Lisboa o cheiro. Talvez agora os srs. do Parlamento se incomodem com a saúde/bem estar dos seus filhos e com os turistas.
  • jose martins
    27 mai, 2018 mação 14:04
    Ao longo do texto a Srª. jornalista diz " Sem possibilidade de ser depositado em aterro, a matéria orgânica tem que ser transformada em material de queima." Se se trata de uma unidade de extracção de bagaço de azeitona, temos que o produto obtido é o oleo de bagaço de azeitona , tendo como subproduto o bagaço extractado. Este bagaço extractado é que ainda pode ser utilizado como combustível, e não o bagaço que vem dos lagares, pois este tem um teor de gordura, que o torna apto para a respectiva extracção.
  • Vasco
    24 mai, 2018 Santarém 21:22
    Desse bagaço ainda se extrai azeite de péssima qualidade mas que é vendido no mercado possivelmente até misturado com outro, depois a forma de extracção como vemos é bastante poluidora quer atmosférica como nas águas, há que repensar em tudo isto de forma a não prejudicar as pessoas e o ambiente.

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