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Wilfredo Cancio: “Em Cuba, o futuro é sempre o passado”

19 abr, 2018 - 07:36 • José Bastos

No dia em há um novo presidente em Havana - o primeiro em seis décadas a não transportar o apelido "Castro" - o analista cubano Wilfredo Cancio diz não acreditar em reformas económicas ou na abertura democrática. Com Diaz-Canel, "será quase mais do mesmo”.

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Em 2011, a Fundação Panamericana identificou-o como uma das 100 personalidades latinas mais influentes dos Estados Unidos. Wilfredo Cancio é uma das vozes mais respeitadas na cobertura e análise noticiosa da realidade cubana.

Licenciado em jornalismo pela Universidade de Havana, exiliou-se nos Estados Unidos em 1994, mas também viveu em Espanha onde passou pela Universidade de Tenerife, nas Canárias.

No jornal "Miami Herald", Cancio assumiu a cobertura da questão cubana durante década e meia e foi editor chefe do diário "Las Américas". Desde o Verão de 2017, Wilfredo Cancio dirige o conglomerado Marti Notícias, a multiplataforma federal em que milhares de cubanos, dentro e fora da ilha, confiam para obter informação.


Wilfredo Cancio não acredita em mudanças imediatas no pós-castrismo. Foto:DR

No dia em que Miguel Díaz-Canel é oficial e simbolicamente confirmado como o primeiro presidente civil da Cuba, Wilfredo Cancio defende que “as mudanças que o regime cubano permite estão já feitas”.

Cancio identifica razões biológicas e não políticas para a mudança de líder, mas lembra que será a “geração dos históricos” a deter a última palavra no poder em Havana.

É que Raúl Castro deixa a presidência esta quinta-feira em cumprimento da limitação de mandatos que ele próprio impôs, depois da doença de Fidel, mas vai continuar a ser o líder do Partido Comunista de Cuba (PCC, o único legal na ilha) a quem, constitucionalmente, cabe dirigir o estado e a sociedade.

A novidade é a de que será a primeira vez em seis décadas que, oficialmente, a chefia do estado, do governo e do PCC não está concentrada na mesma pessoa.

O que esperar do fim da era Castro com Miguel Díaz-Canel? Não ter as credenciais de “histórico” é "handicap" ou vantagem?

Este é um processo de sucessão em que o escolhido é uma figura que no tempo que leva em funções - como primeiro vice-presidente da República - não formulou uma única proposta original, não criou uma só ideia que esteja fora do que tem sido o discurso oficial dos últimos 60 anos.

Levando em linha de conta estes antecedentes de uma figura que tem sido um fiel servidor do "oficialismo" desde que era um dirigente juvenil na Universidade Central "Marta Abreu" de Las Villas, é de esperar um "continuísmo", mas sem o aval histórico. Talvez esteja aí o "handicap".

Os históricos do regime não estão todos de acordo em serem dirigidos por uma figura que não esteja fundada nas raízes das lutas revolucionárias que eles próprios têm. Quiçá comece também aqui a contradição.

Nesta altura, vive-se um confronto entre os velhos combatentes históricos, revolucionários que não estão todos de acordo com Díaz-Canel. Outros preferem Mercedes López Acea, a vice-presidente do Conselho de Estado. Outros defendem Bruno Rodríguez Parrilla, um dos delfins mais totalitários e mais sinistros no governo de Cuba, que é o actual ministro dos Negócios Estrangeiros.

Miguel Díaz-Canel vai estar limitado em matéria de reformas económicas (como as “duas moedas”, ou ‘à chinesa’) para se legitimar junto desses históricos?

As mudanças que este sistema permite já estão feitas. Se as alterações permitidas são cosméticas, então já estão concretizadas. O regime adoptou um modelo com enormes limitações para admitir o investimento estrangeiro. Um modelo complexo, porque o regime quer ficar com o controlo do investimento.

Por exemplo, a entrada em funcionamento de cinco milhões de linhas telefónicas móveis deu aos cidadãos a ilusão de livre acesso ao mundo. Outro exemplo: a medida mais importante de Raúl Castro, tomada em Janeiro de 2013, talvez tenha sido a reforma nas leis migratórias, que permitiu aos cidadãos a saída para o exterior sem tantos contratempos como os anteriores.

Mas, apesar destas medidas cosméticas, o regime cubano já deu provas de que não é reformável e que, nesta altura, vive um quadro económico asfixiante, que se agrava a cada dia que passa, com a crise venezuelana. Cuba está desesperadamente a tentar encontrar alternativas energéticas ao fornecimento de ajudas várias, incluindo petróleo, da Venezuela.

Mas a presidência Raúl não foi mais colegial do que a de Fidel?

Raúl Castro foi um governante numa dinâmica muito mais colegial e tomou medidas que, evidentemente, Fidel Castro estava a travar. Fidel era um homem de controlo absoluto e não estava com meias-tintas. Por comparação, Raúl foi um líder muito mais pragmático para poder aguentar até onde podia um regime já escorado e em crise.

Mas, neste momento, creio que o grande erro, a pior carta jogada por Raúl, foi a retracção face ao quadro criado pelos Estados Unidos e pela aproximação de Obama. Na medida em que também a própria administração Obama abriu as comportas, o regime tratou de se retrair porque constatou que, da parte da população cubana, havia um impulso significativo de admiração pela abertura e de procura de uma solução e um entendimento com os Estados Unidos.

Este dado começou a perturbar o regime ao ponto - e será talvez o aspecto mais negativo da década de Raúl - da reanimação e recuperação do discurso - já totalmente exausto - da propaganda do socialismo de linha dura e do retomar de mecanismos de controlo económico que não fizeram nada bem ao sistema.

E quanto ao regresso de Trump à linha dura com Cuba, quando há quem defenda que, com a linha mais suave de Obama, se acabaria na abertura democrática?…

Essa é uma grande incógnita. Obama também foi muito ingénuo ao ter pensado que, dando tudo ao governo cubano, iria ter, como contrapartida, avanços democráticos em Cuba. E, de todo, não foi assim. Ao governo cubano é preciso impor determinado grau de pressão. Os tecnocratas que rodeavam Obama cometerem também erros tácticos na hora de traduzir intenções para a prática.

É de lembrar que Obama decidiu para Cuba cinco pacotes legislativos que flexibilizaram totalmente os controlos ao embargo, aliviaram praticamente na totalidade o controlo dos bens estrangeiros de países terceiros negociados com Cuba - o departamento do comércio e o departamento do tesouro relaxaram totalmente as medidas restritivas que havia até esse momento.

Havia um clima de total confabulação para Cuba adoptar medidas e avanços em direcção à abertura democrática e à participação dos cidadãos em questões chave. Evidentemente, ficou provado, uma vez mais, que o regime cubano não está preparado para estas alterações.

Então, Trump aproveitou do discurso mais conservador, justamente os pontos mais débeis da política de Obama para Cuba. Ainda assim, na prática tem havido aspectos muito interessantes nestes anos de Trump na presidência. Em dois anos, cresceu a venda de produtos agrícolas a Cuba. Trump adoptou, é verdade, sanções contra o sector militar e contra o fluxo turístico de americanos a Cuba - que já estava em curso, porque Obama flexibilizou as 12 categorias de viagem pelas quais um norte-americano se podia deslocar a Cuba, 600 mil cidadãos sem ascendente cubano viajaram para Havana em 2017 - mas não em áreas comerciais chave.

Creio que vai prosseguir a discurssão teórica sobre se será a flexibilização ou a restrição a contribuir para mudanças em Cuba.

Agora, objectivamente, nestes últimos dois anos, as vendas de produtos agrícolas ampliaram-se enormemente, algo que estava muito limitado na era de Obama, e prosseguiram os contactos diplomáticos de cariz mais técnicos entre Washington e Havana. Registaram-se mais de sete reuniões entre altos funcionários diplomáticos. Há, ainda assim, um quadro de relações diplomáticas abertas e talvez o ponto mais conflituoso seja, neste momento, os alegados “ataques sónicos” que terão tido lugar desde meados do ano passado ao pessoal diplomático norte-americano em Havana que, neste momento, está reduzido a dez elementos.

Com a Venezuela na bancarrota, Cuba procura novos aliados e volta aos braços da Rússia, por causa do petróleo, e da China, como maior parceiro comercial. É como se o clima de "guerra fria" não acabe nunca em Havana…

Estamos, de novo, no prelúdio de uma nova etapa da "guerra fria". O que acontece é que, no plano económico, agora as condições são bem diferentes desse período: quando fornecem Cuba, as empresas russas exigem ser pagas. Cuba obteve o perdão da dívida com o chamado “Clube de Paris” - viu ser perdoados milhões e milhões de euros - mas agora é exigido que Havana negoceie as contribuições mínimas nos habituais planos de pagamentos de transacções comerciais. E Cuba tem, neste momento, um sério problema de liquidez.

No caso da China, ainda é pior do que na relação com a Rússia. Em termos comerciais, a China é o principal parceiro e a relação é fluída, mas o que a China não faz é investir sem garantias. Por exemplo, no porto de Mariel, que é a ponta-de-lança económica que Cuba vende ao mundo, não há uma única empresa chinesa aí baseada, nas 23 estrangeiras que as autoridades cubanas licenciaram até ao momento.

Claro que a China não avança com o dinheiro sem ter garantias. Cuba tem de ter atitudes economicamente mais responsáveis e libertar do jugo estatal as forças produtivas. Raúl Castro não resolveu o problema da falta de produtividade da agricultura, que é básico, para resolver o problema da alimentação no país. Num dos discursos-chave do início de mandato, em 2008, Raúl prometeu garantir um copo de leite por dia na mesa do cidadão comum. Raúl nem sequer essa promessa conseguiu cumprir.

Mas, ainda assim, pela primeira vez em 60 anos, não ter um Castro na liderança tem uma enorme carga simbólica….

Evidentemente, tem uma carga simbólica. Miguel Díaz-Canel tem a minha idade. Somos “filhos da revolução”. Nascemos já depois de Fidel Castro ter chegado ao poder, temos 57 anos de vida. Díaz-Canel estudou em Las Villas, com amigos meus do instituto pré-universitário. Somos da geração que emergiu com a promessa de um futuro muito luminoso ao virar da esquina. Sessenta anos depois, resultou que o futuro haveria de ser o passado. É sempre. Em cuba, o futuro é sempre o passado.

Há uma carga simbólica de haver uma nova geração a assumir a batuta, mas toma a batuta por razões biológicas, não por razões objectivas de influência política. Toma a batuta porque a "geração histórica" está a superar os 80 anos e há, no Conselho de Estado, gente que ultrapassa já os 90 anos, como o comandante Guillermo García Frias ou José Ramón Fernández, vice-presidente do Conselho de Ministros, que fará 95 anos em Novembro.

Assim, a carga simbólica é a de que os "filhos da revolução" ascendem pela primeira vez a posições de poder no aparelho de Estado. Porque importa sublinhar que os "históricos" ficarão a mandar no Partido Comunista e o artigo 5.º da Constituição determina que a força superior na direcção do estado e da sociedade é a do Partido Comunista Cubano.

Mais do mesmo?

Será quase mais do mesmo. Com um pequeno retoque. Creio haver um grande perigo que não é colocado pela geração de Díaz-Canel, mas pelas gerações que estão muito abaixo, gerações que sempre viveram na descrença política. E outras gerações que viveram aproveitando-se da descrença política e há uma geração totalmente de oportunistas como, por exemplo, a dos que lideram os chamados "actos de repúdio", acções de assédio e perseguição a quem se manifesta pela democracia, como ainda no passado fim-de-semana, na Cimeira das Américas, no Perú. Ou seja, há uma geração de retóricos que não tem o aval ideológico da geração anterior e eu creio que o país corre o grave risco de um significativo confronto geracional.

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