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Entrevista

Díaz Martínez: "Crise da Venezuela levou Cuba a aceitar diálogo com Obama"

21 jan, 2015 • José Bastos

É dissidente e um dos maiores poetas da sua geração. Em entrevista à Renascença, Manuel Díaz Martínez diz que "o regime castrista apenas está interessado em sobreviver". Cuba e Estados Unidos reúnem-se esta quarta-feira em Havana para formalizar o reatamento de relações.

Díaz Martínez: "Crise da Venezuela levou Cuba a aceitar diálogo com Obama"
A reaproximação Estados Unidos-Cuba terá, esta quarta-feira, o primeiro passo formal com o início de negociações directas em Havana. À capital cubana já chegou uma delegação liderada pela secretária de Estado adjunta Roberta Jacobson, a principal diplomata dos Estados Unidos para a América Latina.

Cuba confirmou oficialmente uma reunião bilateral a 21 e 22 de Janeiro para "discutir princípios e passos para o restabelecimento de relações e abertura de embaixadas nos dois países".

Esta quarta-feira serão discutidos temas migratórios com delegações encabeçadas pela diplomata cubana Josefina Vidal Ferreiro e o subsecretário-assistente do Departamento de Estado norte-americano Edward Alex Lee.

Já na quinta-feira o diálogo será à volta do restabelecimento, de facto, das relações entre os dois países num encontro em que os Estados Unidos serão representados por Roberta Jacobson.

Cuba e Estados Unidos anunciaram a 17 de Dezembro uma série de acordos para o reatamento de relações diplomáticas, em ruptura desde Janeiro de 1961.

OÀ Renascença, o dissidente cubano Manuel Díaz Martínez diz que "o regime castrista apenas está interessado em sobreviver". "Foi a crise na Venezuela que precipitou a aproximação a Washington", defende o poeta e jornalista. Diz que Cuba pode tornar-se uma "pequena China" das Caraíbas, de economia aberta, mas regime fechado.

Antigo conselheiro cultural da embaixada de Cuba em Sofia, Diáz Martínez foi director da revista "Encontro de Cultura". É, por muitos, considerado o maior poeta cubano da sua geração. Membro da Real Academia Espanhola, vive exilado em Las Palmas.

Esta quarta-feira inicia-se o diálogo formal Havana-Washington. Qual é a sua expectativa?
Foi dado um passo que rompe com uma inércia de mais de meio século. Um passo que pode desembocar em medidas que favoreçam ambos os povos: o cubano e o norte-americano. A melhoria das relações vai, desde logo, ser um factor extra, algo de novo, algo de positivo no contexto bilateral.

Pode ser positivo também para a melhoria das condições de vida dos cubanos. Mas sou muito cauteloso quanto a perspectivas muito positivas.

Não creio que o governo de Cuba – conheço-o muito bem e padeci com ele durante 30 anos – esteja interessado em medidas que diminuam o seu poder absoluto sobre a política interna, sobre a cidadania e sobre as liberdades dos cubanos.

Qual é o principal problema da população cubana e de que forma pode ser suavizado com o diálogo Havana-Washington?
Há 50 anos que a base do principal problema da população radica na falta de liberdade do cidadão cubano para colocar em prática todo o tipo de iniciativas.

Quando existe um governo tão possessivo, tão fechado em si mesmo e nas suas convicções que impede o conjunto dos cidadãos de exercer a sua liberdade, o resultado final é a Cuba de hoje.

Um país completamente parado no tempo e onde a única vida permitida é a que garanta a continuidade da ditadura que subsiste há mais de meio século.

Defende então que o embargo norte-americano não era a causa de todas as dificuldades dos cubanos?
O principal responsável das dificuldades em que vive o povo cubano é, há mais de 50 anos, o embargo interno que o governo impõe à liberdade dos seus cidadãos. Em primeiro lugar a liberdade de opinar sobre os seus próprios problemas e ter possibilidade de desenvolver o país.

Um país onde os cidadãos não têm a garantia da iniciativa privada, na iniciativa pessoal, na cultura, na economia e na política é um país que se chama Cuba. Um país detido, um país completamente bloqueado pelo seu próprio governo.

Entre a população que segmento social pode ganhar mais, ou perder, com uma possível abertura?
Se há uma abertura que permita melhorias na economia e em que todo o conjunto de actividades de uma sociedade se pode desenrolar com maior liberdade e força todos sairão beneficiados. Mas, claro, sobretudo a população mais jovem, que é aquela que tem, diante de si, uma maior perspectiva de vida.

A abertura económica pode acelerar a abertura política?
Não necessariamente. No pré-castrismo com o ditador Fulgencio Batista, Cuba tinha liberdade económica. E vivia numa ditadura. E, de resto, há agora o modelo chinês, ou o modelo vietnamita, a permitir liberdades económicas e, contudo, continuam a ser politicamente regimes fechados.

Mas Cuba não pode ser uma "pequena China" nas Caraíbas de economia aberta, mas regime fechado?
Isso é possível. Desde logo, Cuba não tem os recursos e riquezas naturais semelhantes para poder ter um desenvolvimento económico espectacular da China sob o regime de partido único. Mas a uma escala menor é possível.

Na diáspora cubana e na ilha qual é a percepção pública do papel do Papa na aproximação aos Estados Unidos?
Com a informação que tenho – resultante dos cubanos com quem falei – creio não haver uma percepção clara. Há a sensação de que o Papa intermediou este conflito entre os Estados Unidos e Cuba com um espírito de conciliação e um espírito humanista.

Mas, na prática, quem tem nas mãos as chaves para resolver os problemas concretos de Cuba e da relação com os Estados Unidos são os governos de... Cuba e dos Estados Unidos.


Foto: EPA

Qual foi a influência da crise na Venezuela – a baixa do petróleo – na aproximação Havana-Washington?
O governo de Cuba aceitou a oferta de diálogo do governo norte-americano justamente porque vê a possibilidade de ficar a flutuar no vazio com o problema do petróleo venezuelano. Cuba vive do petróleo venezuelano. Antes, vivia da ajuda soviética.

Agora, as necessidades energéticas cubanas estão totalmente dependentes do petróleo venezuelano. Se a Venezuela não pode continuar a fornecer a sua "bolsa de estudo petrolífera" – apetece colocar a questão desta maneira – a situação do governo cubano ficaria muito difícil.

Foi este problema do petróleo o factor que terá obrigado o regime de Cuba a aceitar a proposta de diálogo de Obama. Defendo a opinião de que o embargo servia os interesses do regime.

Na prática, os Estados Unidos relacionavam-se comercialmente com Cuba. Apenas se impedia a obtenção de créditos. Cuba tinha de pagar em "dinheiro vivo" e antecipadamente, mas havia comércio. E o embargo sempre foi o grande álibi do regime cubano para recusar deficiências próprias e justificar a repressão sobre a oposição interna.

Como avalia o sinal projectado pela recente vaga de libertações de 36 opositores internos de uma lista de 53 apresentada pelos Estados Unidos?
Não é mais que um gesto para credibilizar uma tentativa de mudança nas relações Cuba-Estados Unidos. Não deixo de pensar que Washington está mais interessado nessa alteração histórica que o próprio regime cubano.

O interesse fundamental do regime de Havana é manter-se tal como tem estado durante mais de meio século.