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Maria João Gago

"Caso BES pode levar a mudanças legislativas"

18 set, 2014 • João Carlos Malta

O Parlamento deve aprovar esta sexta-feira a criação de uma comissão de inquérito ao caso BES. Maria João Gago, co-autora de "O Último Banqueiro", livro sobre os anos de Ricardo Salgado à frente do império Espírito Santo, acredita que a comissão permitirá conhecer novos dados.

"Caso BES pode levar a mudanças legislativas"
O caso BES vai chegar em força à discussão parlamentar, com a expectável aprovação, esta sexta-feira, de uma comissão de inquérito sobre o tema. A Renascença falou com uma especialista na matéria, a jornalista Maria João Gago, que é também co-autora do livro "O Último Banqueiro", sobre o percurso de Ricardo Salgado à frente do império Espírito Santo. Defende que a comissão parlamentar terá tanto impacto como a do BPN.

A condimentar a discussão haverá ainda o contexto político pré-eleitoral e o tiro de partida para a venda do Novo Banco. A jornalista do "Jornal de Negócios" acredita ainda que não passaremos esta situação sem que haja mudanças na regulação a aplicar ao sistema financeiro, tal como aconteceu nos momentos seguintes aos casos BPN e BCP.

Gago diz que o ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar afirmou a Ricardo Salgado que se falasse das contas do BES "teria muito que dizer". E deixa um alerta: no caso de uma má venda do Novo Banco, "não é irreal dizer que haverá um condicionamento do financiamento à economia pelas instituições".

Qual será a utilidade da comissão de inquérito? Terá o mesmo impacto do que a do BPN?
Penso que terá o mesmo impacto até porque a dimensão do colapso do BES é muito maior do que a do BPN. Além da dimensão e impacto do banco, há ainda o facto de esta comissão decorrer numa fase de quase pré-campanha eleitoral. Ou seja, por um lado, temos um tema sensível com grande impacto e, por outro, um momento político quente com eleições à porta. A juntar a tudo isto está a decorrer o processo de venda do Novo Banco. Isso é claro, neste momento, face à nova administração que tomou posse. Há portanto um "cocktail" de factores que fazem desta comissão relevante. Tenho algumas expectativas para, que tal como no caso BPN, sirva para apurar dados relevantes.

Podemos então contar com novidades?
Tenho essa expectativa. Foi o que aconteceu na primeira comissão do caso BPN, não tanto na segunda. Espero que apareçam novos factos.

Sobretudo políticos?
Não sei se serão políticos, mas sim sobre a vida interna do banco. Isso aconteceu no caso BPN. Pela experiência que tenho das comissões de inquérito aos casos BCP e BPN pode até haver algumas alterações legislativas decorrentes. Um dos deputados que poderá ficar nessa comissão, o deputado Duarte Pacheco do PSD, já fez uma proposta pessoal que propõe uma alteração na forma de contratação das empresas de auditoria pelos bancos. A sugestão dele que é partilhada por algumas pessoas do sector bancário é a de que possa haver uma transferência dessa responsabilidade para o Banco de Portugal. Os bancos continuam a pagar, mas pagam primeiro ao Banco de Portugal, que depois contratará as auditoras. À semelhança do que já hoje acontece com as avaliações anuais especiais que o Banco de Portugal introduziu desde 2011.

Em termos de apuramento de responsabilidade será mais difícil. Mas poderá esclarecer algumas questões sobre os "timings" de quando é que Banco de Portugal e a CMVM tiveram conhecimento sobre determinados factos e se poderiam ter actuado mais cedo. Isso dará muito ruído político, mas acho que poderá esclarecer algumas dúvidas.

A ida de Salgado ao Parlamento foi requerida. Conhecendo o perfil do ex-líder do BES, pensa que irá ao Parlamento?
Não é fácil responder. Acho que vai depender muito da forma como a pressão mediática evoluir até aí. Ainda demorará algumas semanas até que seja chamado e mais algumas até à eventual audição. É uma incógnita. Ele tem sangue frio suficiente para ir lá e passar duas ou três mensagens. Mas tendo em conta a pressão que há hoje, pode resguardar-se para uma altura posterior.

Este foi o fim da era Ricardo Salgado ou ainda é cedo para sentenciá-lo?
Não sei se é o fim, mas há uma perda e uma destruturação do poder em que ele se sustentava. Será muito difícil manter a posição que tinha até há três meses. Tal como outros comentadores têm dito, é claro que Ricardo Salgado tem conhecimento de muitas coisas que não são do domínio público, nomeadamente decisões que foram tomadas nos últimos 20 anos em Portugal. E informação é poder. Ricardo Salgado já não é o "Dono Disto Tudo", mas tem o poder da informação sobre quem fez o quê, quem decidiu o quê e quem influenciou que decisões. E isso é bastante relevante.

O livro conta o episódio de um encontro com Vítor Gaspar e Ricardo Salgado na Associação Portuguesa de Bancos, em Junho de 2013. Na ocasião, o ex-ministro dá a entender que sabe da situação difícil do banco quando diz: "Se eu fizesse declarações sobre a dívida do BES tinha muito a dizer". Isto não é a prova de que o poder político, neste caso o Governo, sabia há mais de um ano o que se estava a passar no BES?
Quando eu e a Maria João Babo escrevemos o livro essa foi uma das histórias que achámos mais interessantes. Mas, na altura, não percebemos qual era a importância que esse episódio tinha numa análise posterior às responsabilidades. Acho, claramente, que essas declarações dão indicação de que havia suspeita de que existiam problemas. Mas não faço ideia qual era o nível de informação que o ex-ministro Vítor Gaspar detinha.

Mas a frase é esclarecedora?
É esclarecedora, mas, apesar de termos achado que era das mais relevantes do livro, não é possível saber ao certo qual o nível de conhecimento que Vítor Gaspar possuía. Também é claro que, tal como sucedeu no BPN, havia muitos comentários de alguns responsáveis do sector financeiro, já para não falar de responsáveis de outras áreas. Havia estranheza sobre toda a organização do BES em cascatas de "holdings" que permitia à família controlar e de que havia uma organização muito pouco transparente que levantava dúvidas. A verdade é que até ao início deste ano ninguém pensava que podia acontecer aquilo que aconteceu. Mas acho que é um aspecto [a frase de Gaspar] interessante para a comissão de inquérito averiguar.

Conseguiram saber se esse conhecimento era transversal a outros membros do Governo? Voltaram a surgir notícias de que Passos Coelho já teria informações do caso…
Não. Nem sequer temos conhecimento sobre o tipo de informação que Vítor Gaspar dispunha sobre essa situação que sustentasse aquela frase. O que tínhamos era o relato sobre aquele episódio. Não sabemos qual o nível de informação que os outros membros do Governo tinham.

Qual foi papel de José Maria Ricciardi nesta crise. A do intriguista palaciano que desferiu o último golpe no grupo ou do homem que num acto heróico tentou salvar o grupo do precipício?
Penso que não é nenhum desses dois perfis. Agora é mais fácil falar sobre o que se passou em Novembro do ano passado, quando o presidente do BES Investimento quis afastar Ricardo Salgado da presidência do BES. Já havia ideia de que haveria problemas para resolver no banco e no grupo, e ele queria afastar Ricardo Salgado por o responsabilizar por estes problemas. Agora também penso que houve aqui um aproveitamento de Ricciardi para tomar o lugar do primo. Acho que não foi nem um acto heróico nem uma traição palaciana. Parece-me que houve uma avaliação de um momento que poderia ser oportuno para que José Maria Ricciardi se afirmasse como sucessor da família.

Aquilo que sabemos hoje é que houve um agravamento da situação nos primeiros nove meses do ano, que poderia ter sido evitado se tivesse havido uma mudança na liderança antecipada. Agora tenho dificuldade em saber se José Maria Ricciardi seria a pessoa para resolvê-los. Muitos deles estavam nas "holdings" familiares, e era necessária muita coragem e capacidade de ruptura para um membro da família pôr em causa tudo isso, enfrentando o problema de frente e de forma radical. O que depois acabou por acontecer pela mão do Banco de Portugal.

Agora surgem notícias e muitos que dizem que já havia indícios de que a situação era grave. Para quem segue o sector a situação do BES era um tema que circulasse muito nos bastidores?
Na verdade não se falava assim tanto. Mas havia algumas pessoas que consideravam que havia ali alguns problemas. Apesar de algumas coisas que eram ditas informalmente por pessoas do sector financeiro, mesmo eles terão ficado surpreendidas com a dimensão do problema e as ondas de choque que está a ter.

Sem o conflito de Ricardo Salgado com Pedro Queiroz Pereira, e as dezenas de especialistas que o dono da Semapa colocou a estudar o Grupo Espírito Santo, a acção do Banco de Portugal teria acontecido agora?
Obviamente que Pedro Queiroz Pereira contribui para pôr pressão sobre o Banco de Portugal, mas é ainda difícil dizer o que começou primeiro: se a pressão do Banco de Portugal sobre o BES no âmbito daquela avaliação especial que o supervisor fez aos bancos, se a pressão de Queiroz Pereira. Ele teve o mérito de colocar o dedo na ferida e fazer pressão junto dos supervisores.

Mas a importância dessa investigação externa e essa visível dependência não é um sinal de fragilidade do Banco de Portugal?
Não vou fazer comentários sobre isso. O que posso dizer é que claramente os problemas estavam circunscritos à área não financeira e essa é uma área que está fora da supervisão do Banco de Portugal.

Não terá de mudar alguma coisa, sobretudo em casos em que haja ligação entre um banco e um grupo não financeiro?
Obviamente alguma coisa terá de mudar. Não sei se a legislação que existe já não daria para fazer alguma intervenção. Há lições a aprender com o caso BES porque é preciso um maior escrutínio sobre os accionistas relevantes e as relações que existem entre as instituições financeiras e os accionistas.

Uma venda do banco a um preço mais baixo do que o valor colocado pelo Fundo de Resolução, e crendo que serão mesmo os bancos a arcar com o prejuízo, que efeito terá na banca? Colocará em risco o financiamento à economia?
Não sei. Mas uma venda com prejuízo do Novo Banco obrigará os bancos a fazer novas contribuições para o Fundo de Resolução. Ainda assim, a legislação desse fundo também não permite que essas contribuições ponham em causa a solvabilidade dos bancos e das instituições financeiras.

Essas contribuições terão de ser assumidas com conta, peso e medida, de forma faseada e prolongada no tempo. Mas mesmo que isso aconteça será uma pressão adicional sobre a solidez dos bancos e sobre os seus custos. Não é irreal dizer que haverá um condicionamento do financiamento à economia pelas instituições. Mas isso está dependente do valor do prejuízo e de como será pago.