"Eu ia já para Portugal". Adeptos do Celta de Vigo querem jogar na I Liga

Os adeptos do Celta sentem-se encurralados e revoltados com as arbitragens desta temporada e daí renasceu a "velha" ideia de jogar em Portugal. A proximidade geográfica, cultural e linguística dá força ao plano, mas surgem várias barreiras legais.

22 dez, 2023 - 07:30 • Eduardo Soares da Silva



"Eu ia já para Portugal". Adeptos do Celta querem jogar na I Liga

O marcador aponta o minuto 82. É uma noite amena de outubro na Catalunha e as bancadas estão praticamente cheias no Estádio Montilivi. 0-0 é o resultado entre o líder Girona e o Celta de Vigo.

Renato Tapia levanta a cabeça, vê um colega vestido de azul celeste a desmarcar-se na área e tira o cruzamento. O guarda-redes do Girona deixa os postes, encaixa a bola no peito, mas deixa-a escapar. Gazzaniga choca com Carlos Dotor, que aproveita o erro para assistir Luca de la Torre, que só precisa de encostar para marcar golo.

Na televisão, mostram-se três repetições. Umas mais aproximadas e vários ângulos alternativos. “Não creio que haja falta. É uma enorme falha do guarda-redes”, concluem os comentadores do jogo.

O lance acaba anulado por falta, com confirmação do VAR. Nos descontos, Girona marca o golo da vitória.

Nos dias que se seguem, os adeptos preparam uma lista de acusações com várias decisões de arbitragem nas primeiras dez jornadas: penáltis mal assinalados, outros por marcar; expulsões injustas e cartões por mostrar. De seguida, uma conclusão: “Temos de ir jogar para Portugal."


Esta não é primeira vez que surge a ideia de trocar Bilbau, Sevilha, Madrid e Barcelona pelos relvados portugueses.

Pepe Méndez é o presidente da Federação de "Peñas" Celtistas, organização que reúne vários grupos de adeptos do clube. Uma tradição espanhola na forma de apoio e sem semelhante em Portugal.

Com a memória de décadas a acompanhar o Celta, recorda-se que a primeira vez que ouviu a ideia de ir jogar para o outro lado da fronteira foi em 1998. “Pelo menos ali vão respeitar-nos”, era o que ouvia. Até hoje concorda: "Eu iria jogar para Portugal agora mesmo".


Ouça a reportagem completa

Este ano, a discussão volta a ter as mesmas origens. Começa com a indignação dos jogadores, as bancadas ressuscitam a ideia, as redes sociais servem de megafone e o tema rapidamente chega à imprensa local. O jornal “NÒS Diário” – o único da região ainda a imprimir em galego – faz um inquérito aos seus leitores.

Apoiaria que o Celta jogasse na liga portuguesa?”. 90% respondeu que sim.

Santi Peón é jornalista na "Cadena COPE", uma das principais rádios do país. Acompanha o dia a dia do clube há uma década. Viveu os melhores dias – a campanha até à meia-final da Liga Europa em 2017 – e as dificuldades dos últimos anos.

Para Santi, as queixas são justas, principalmente pelo volume de casos. “São quatro ou cinco lances”, explica. “Prejudicaram o Celta de forma notável. Não acreditamos em teorias da conspiração, mas é difícil entender erros tão graves”.


Pepe Méndez preside a federação de "peñas" do Celta de Vigo desde 1993. É uma figura reconhecida pelos adeptos. Foto: Maria Carvalho
Pepe Méndez preside a federação de "peñas" do Celta de Vigo desde 1993. É uma figura reconhecida pelos adeptos. Foto: Maria Carvalho
Este jornal, de maio de 2013, é uma recordação de uma época dramática para o Celta. A manutenção foi garantida na última jornada. Foto: Maria Carvalho
Este jornal, de maio de 2013, é uma recordação de uma época dramática para o Celta. A manutenção foi garantida na última jornada. Foto: Maria Carvalho


A ideia aparenta reunir consenso. Pepe Méndez acredita que o descontentamento é tal que, se existisse hoje uma votação séria, "98% seriam a favor da mudança".

O presidente do grupo é uma figura conhecida em Vigo. A federação tem o seu próprio espaço no estádio, mesmo não sendo formalmente ligado ao clube.

A poucos passos da loja oficial do Celta, abre-se a porta da sede das "peñas". São cerca de 50 metros quadrados e o sonho de qualquer adepto-colecionador. As prateleiras estão preenchidas. Acumulam-se placas, galhardetes, cachecóis, medalhas, camisolas e até recortes de jornais. Cada um conta uma história.

O volume de recordações é tal que resta pouco espaço de trabalho na maioria das secretárias.

Num dos cantos da sala, chama à atenção um modelo à escala humana com o equipamento do Celta. Com uma alteração: a cerveja galega que patrocina o clube há vários anos é substituída pelo símbolo da federação. É uma das peças principais neste museu não oficial do clube.


A sede da federação fica no estádio do Celta de Vigo, um espaço de cerca de 50 metros quadrados. Foto: Maria Carvalho
A sede da federação fica no estádio do Celta de Vigo, um espaço de cerca de 50 metros quadrados. Foto: Maria Carvalho
Acumulam-se cachecóis, galhardetes e há até camisolas para distribuir pelas "peñas". Foto: Maria Carvalho
Acumulam-se cachecóis, galhardetes e há até camisolas para distribuir pelas "peñas". Foto: Maria Carvalho


“Portugal e Galiza podiam ser a mesma nação”

Pepe Méndez fala um galego carregado, nem sempre fácil de compreender. Percebe-se o orgulho regionalista na voz e também no discurso. Não o esconde nas palavras. "Somos muito diferentes do resto dos espanhóis, somos gente trabalhadora e aí somos muito parecidos aos portugueses", considera.

Na base da identidade está o idioma. Entender a ideia de jogar em Portugal é também compreender a Galiza e o seu povo, descrito como "desconfiado" pelo resto do país.

“Costuma-se dizer que quando encontras um galego nas escadas, ele não te diz se está a subir ou a descer”, confessa o jornalista da COPE.

"Se não fossem aspetos jurídicos, Portugal e Galiza podiam ser a mesma nação", Filipe Abalde

Tal como acontece no País Basco e na Catalunha, existe também um movimento independentista na Galiza, mas que nunca foi maioritário, contextualiza Santi Peón.

Filipe Abalde é sócio do Celta. Para além das paixões desportivas, é uma das caras do Bloco Nacionalista Galego (BNG), o segundo partido mais representado no parlamento regional e o único independentista. Para ele, a Galiza tem “todas as características de uma nação autónoma”.

Somos uma nação dentro de um estado”, aponta.


Todos têm algo em comum: fazem questão de separar a Galiza do resto de Espanha, quase como um ponto de honra nas conversas. Mas não o fazem com Portugal. Dizem até que “há uma certa lógica” em jogar do lado de cá da fronteira.

"Não seria descabido", concordam Santi Peón, Filipe Abalde e Pepe Méndez.

"Social, cultural, gastronómica e linguisticamente, não há grandes diferenças", aponta Filipe. E completa: "Há uma fronteira criada no rio Minho mas, se não fossem esses aspetos jurídicos, podiam ser a mesma nação".

Proximidade seduz adeptos

Serão os galegos mais próximos a Portugal que ao resto de Espanha? O presidente da federação responde três vezes sim à questão. "Totalmente", atira, com confiança.

Pepe dá exemplos: "Vais a Verín e há um grande convívio com Chaves, Montalegre com Cualedro, Tui com Valença. Do Porto para cima há muita ligação". Até conhece quem viva em Espanha e trabalhe em Portugal. E é exatamente a proximidade geográfica que mais atrai os adeptos.

Filipe Abalde explica que, ao longo dos últimos anos, o Celta tornou-se um "último reduto" no noroeste do país, após as despromoções do Deportivo da Corunha, Gijón, Oviedo e Real Valladolid.

Esta época, as deslocações mais próximas são Madrid, a quase 600 quilómetros de distância, e o País Basco, à distância de sete horas de carro.

Em Portugal, a maioria dos clubes da I Liga estão concentrados a norte. É um argumento que seduz e que dá alguma força à ideia de ir jogar para Portugal. "Era uma maravilha, ainda se voltava a tempo de jantar em casa", ri-se Filipe Abalde.


Foto: Maria Carvalho
Foto: Maria Carvalho

Lei portuguesa não permite

É com risos que a maioria encara a proposta. Uma brincadeira, um protesto e, em muitos sentidos, também uma provocação. Filipe Abalde acha que o tema só nunca foi levado a sério porque, apesar de não conhecer as regras ao detalhe, seria impossível à luz dos regulamentos atuais: “Nunca nos iriam permitir”.

“É uma utopia absoluta ao dia de hoje”, concorda o jornalista Santi Peón. Ambos têm razão. Qualquer intenção séria de jogar em Portugal esbarra na lei nacional.

O artigo 62.º do regime jurídico das federações desportivas é claro: apenas clubes portugueses podem disputar provas nacionais.

Há uma lógica de territorialidade no nosso ordenamento jurídico”, ou seja, “seria ilegal” que o Celta jogasse em Portugal, aponta Alexandre Mestre, antigo secretário de Estado do Desporto, membro independente do Comité de Governance e Compliance da UEFA e especialista em direito desportivo.

O principal impedimento é a legislação portuguesa, uma vez que, apesar de os regulamentos europeus defenderem um “modelo de federações nacionais”, não existe uma proibição clara.


O artigo 62.º do regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva

1 - As competições organizadas pelas federações desportivas, ou no seu âmbito, que atribuam títulos nacionais ou regionais, disputam-se em território nacional

2 - As competições referidas no número anterior são disputadas por clubes ou sociedades desportivas com sede no território nacional, só podendo, no caso de modalidades individuais, ser atribuídos títulos a cidadãos nacionais.


Santi Péon faz a cobertura diária do Celta de Vigo há dez anos. Foto: Maria Carvalho
Santi Péon faz a cobertura diária do Celta de Vigo há dez anos. Foto: Maria Carvalho
Na redação da COPE, no coração de Vigo, uma equipa de jornalistas dá as notícias para toda a Galiza. Foto: Maria Carvalho
Na redação da COPE, no coração de Vigo, uma equipa de jornalistas dá as notícias para toda a Galiza. Foto: Maria Carvalho


O Celta não seria o primeiro clube a jogar noutro país: o Andorra é uma equipa emergente em Espanha; Cardiff, Wrexham e Swansea - todos do País de Gales - disputam o futebol inglês e o São Marino está nas divisões inferiores italianas.

Há um caso ainda mais caricato. O Vaduz, do Liechtenstein, joga em dois países ao mesmo tempo: o campeonato na Suíça e a taça no seu país.

Isto dá origem a uma situação singular: com os recursos do futebol suíço, o Vaduz domina a taça do seu país. Venceu-a 49 vezes - incluindo todas as edições desde 2012 -, o que lhe permite jogar anualmente nas provas europeias, apesar de estar na segunda divisão da Suíça.

Em todos estes casos, os clubes inscreveram-se em ligas estrangeiras porque, à data da sua fundação, não existiam competições nacionais. Até hoje, nunca um clube trocou o seu campeonato nacional pelo de um país vizinho. Não há precedente para a ideia dos adeptos galegos.

Mesmo que a intenção celtista não esbarrasse na lei portuguesa, existiria outro grande senão: seria impossível uma transferência direta para a primeira divisão, uma vez que o princípio das subidas e descidas de escalão está consagrado nos regulamentos da FIFA.


“Ninguém pode entrar num campeonato sem ser por mérito desportivo, um clube não pode mudar a sua sede com o propósito de ocupar o lugar de outro”, esclarece Alexandre Mestre.

Na prática, o Celta deixaria de jogar contra as estrelas do Real Madrid e do Barcelona, mas não iria defrontar Pepe, Aursnes, Gyokeres ou Ricardo Horta. Iria, sim, medir forças com os jogadores amadores do Condor, do Vila Fria ou do Barroselas, na segunda divisão distrital da AF Viana do Castelo - sexto escalão nacional -, em que provavelmente se iria inscrever.

Jogar em Portugal já foi tema entre adeptos, nas redes sociais e também na imprensa local. Só não o foi na direção do clube.

O Celta, atualmente a viver uma reestruturação diretiva, não respondeu às questões da Renascença. A federação galega, com sede a 50 metros dos Balaídos, também optou por não conceder uma entrevista. O tema ainda não entrou nos corredores de decisão, mas chegou a ser tema em reuniões de acionistas.


Filipe Abalde é adepto, sócio e acionista minoritário do Celta, para além de membro do partido Bloco Nacionalista Galego. Foto: Maria Carvalho
Filipe Abalde é adepto, sócio e acionista minoritário do Celta, para além de membro do partido Bloco Nacionalista Galego. Foto: Maria Carvalho

O Estádio de Balaídos tem capacidade para perto de 33 mil adeptos. Foi inaugurado há quase 100 anos e renovado em várias ocasiões. Foto: Maria Carvalho
O Estádio de Balaídos tem capacidade para perto de 33 mil adeptos. Foi inaugurado há quase 100 anos e renovado em várias ocasiões. Foto: Maria Carvalho
Afouteza, palavra galega que é marca do clube e da região. Significa a vontade de superar problemas sem medo de perigos ou dificuldades. Foto: Maria Carvalho
Afouteza, palavra galega que é marca do clube e da região. Significa a vontade de superar problemas sem medo de perigos ou dificuldades. Foto: Maria Carvalho


Filipe Abalde - também um investidor minoritário – recorda um adepto que viajava de Ribadavia até Vigo, cerca de uma hora, para todos os anos apresentar a mesma proposta.

“Não sabemos se acreditava mesmo nisso, mas levava sempre a discussão a proposta de jogar em Portugal. A direção nunca deu grande atenção, acho que levava como brincadeira. Mas mostra que já foi discutido num organismo mais sério”, recorda, quase como se estivesse a contar uma anedota.

Colocados os prós e contras na balança, Pepe Méndez continuaria a escolher Portugal, mesmo que por cá encontrasse os mesmos problemas que estão na origem do protesto: “Sei que me atrai mais ir a Braga, ao Porto, ou até a Lisboa, do que ir a Madrid. Porque sei que vou chegar a Madrid e vão roubar-nos”.

E em Portugal? “Isso não sei. Seria preciso prová-lo”, conclui.


Artigos Relacionados