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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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O Capuchinho Vermelho não é um conto

28 nov, 2017 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Como bem sabemos, a história do Capuchinho Vermelho não é apenas um conto e tal como grande número de relatos populares, trabalhados através de muitas gerações, é uma história de vida.

Bruno Bettelheim, na sua obra sobre os contos de fadas, explicou que as pessoas, para serem equilibradas e produtivas, precisam de encontrar um sentido para a vida, ter uma “plena consciência da existência” e não viver a vida momento a momento. Tal significa “transcender os limites estreitos de uma existência autocentrada” e aceitar que “a fonte de muito mal no mundo é devido às nossas próprias naturezas – a propensão que todo o homem tem para agir agressivamente, associalmente, egoistamente, por raiva ou angústia.”

Formas muito quotidianas desses egoísmos, raivas e angústias estão claramente presentes num dos contos populares que Bettelheim analisa em detalhe. Trata-se do Capuchinho Vermelho, a menina, virtuosa e atractiva, que vai levar o lanche à Avó doente é instada pela Mãe a evitar o bonito bosque, escuro e denso, pois este é habitado pelo Lobo Mau. Apesar das advertências, o encontro entre a Menina e o Lobo acaba por se dar pois esta cede à tentação de se desviar da estrada. Mas o Lobo não só é forte mas sabido e, evitando alertar os caçadores que andam por ali, ludibria a Menina com a sua conversa mansa e deixa-a prosseguir caminho. De facto, iludida pelas palavras do Lobo ou cansada da sua insistência, a Capuchinho fornece-lhe a morada da Avó, onde o Lobo a esperará mais tarde. Uma vez engolida a fragilizada anciã, o Lobo deita-se na sua cama e faz-se passar por esta. Quando a Menina chega é sedutoramente convidada a partilhar o leito com aquela estranha «Avó», acabando por também ser comida.

Há versões diversas para o final da história, sendo que algumas propõem a entrada em cena de um astuto, forte e armado caçador, uma espécie de justiceiro popular, eventualmente parental, que mata e esventra o Lobo Mau, assim salvando milagrosamente Avó e Neta, num jogo intricado de riscos, violências e vitórias da vida sobre a morte. A Menina apercebe-se, então, de que não voltará a «pisar o risco», indo contra os avisados pedidos da Mãe, e acaba por compreender o perigo que representam os seus próprios desejos, libidinosos, já se vê.

Como bem sabemos, a história do Capuchinho Vermelho não é apenas um conto e tal como grande número de relatos populares, trabalhados através de muitas gerações, é uma história de vida. Uma história sobre a sexualidade, o desejo, o poder da sexualidade e do desejo, a violência, a desobediência e os seus riscos, idealizada para ajudar as crianças a construir o carácter, tando aprendendo a resguardando-se de eventuais predadores como a treinar-se para evitar ser um deles. Bettelheim lembra que o Lobo não representa apenas o sedutor masculino, representa todas as “tendências associais e animalísticas que existem dentro de nós”, do mesmo modo que a Avó e a Mãe do Capuchinho representam figuras educativas bastante incompetentes, que mimam sem educar face às dificuldades da vida real e que oferecem uma capa chamativa e erotizante, que a expõe precocemente.

Verbalizar as questões da violência contra as mulheres é um tema muito doloroso e difícil que beneficia destes sábios relatos fantásticos. São verdadeiros objectos transacionais que fazem a ponte entre os medos individuais e a construção dos mecanismos que nos ajudam a modificar realidades inaceitáveis. Quando se marchou, há dias, contra a Violência de Género – todas as aviltantes situações do tráfico humano; das mulheres que vivem, em pleno século XXI, condições sociais e políticas de total desprotecção legal; das que são forçadas à prostituição ou, no calor dos seus lares, agredidas e mortas, ou no emprego e nas ruas, forçadas a algum tipo de prática sexual que não escolheram – é impossível não ter presente a indiferença mais ou menos geral que provoca o cálculo (70 anos) do tempo que demorará a alcançar a paridade nas posições de decisão se não forem adoptadas quotas, ou os 200 anos que custará garantir, sem medidas corretoras, a igualdade salarial entre homens e mulheres. Mas na maioria dos discursos – apesar das mulheres representarem cinquenta por cento da população – parecem sempre questões colaterais, simultaneamente demasiado antigas, de gastas, e excessivamente inovadoras e radicalizadas, por ainda impraticáveis.

Mas as problemáticas citadas são essenciais para o progresso das sociedades e cruciais para o respeito pelos Direitos Humanos. Mesmo sobre brejeirices, assobios, piropos e outras interacções assim de interessantes, a reflexão de Bettelheim deve continuar a inspirar-nos: “O conto de fadas contém em si a convicção da sua mensagem; … Não é preciso dizer o que a Menina do Capuchinho Vermelho vai fazer ou o que será o seu futuro. Devido à sua experiência, ela será capaz de o decidir sozinha.” É isso que desejamos para todas as pessoas, mulheres incluídas: que tenham a oportunidade de decidir por si mesmas um futuro de relevância e dignidade.

Comentários
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  • Gomes
    29 nov, 2017 Setúbal 19:32
    Cristina Sá Carvalho não sabe viver em democracia. De modo a branquear este texto muito mal concebido, tratou de censurar (ao mais baixo estilo) os comentários negativos. Triste.
  • MASQUEGRACINHA
    29 nov, 2017 TERRADOMEIO 19:11
    Ainda nos falta muita, mas mesmo muita, evolução, para sublimarmos a nossa natureza animal. Dos machos da espécie, sempre entalados na braguilha ou obcecados com excrescências na testa, é mais fácil concluir que o primitivismo atávico os domina, pobres brutos. Mas, e as fêmeas? O que as domina, interiorizado que têm comportamentos e modas aparentemente irracionais, como sapatos agulha ou plataforma gigante, wonder-bras maximalistas, meias de rede, permanentes e desfrisados nos cabelos, unhas disto e daquilo, asas de anjo por cima da cueca transparente e botas à gladiador... Atenção, nada contra - nem a favor. O que acontece, e me parece importante notar, é que, se os homens são, em grande maioria, dominados por um atavismo que os faz encarar as mulheres como objecto de posse e uso, as mulheres, são, em grande maioria, dominadas pelo atavismo de serem objectos de facto, nem que isso lhes custe calos e calvície. O que não justifica quaisquer abusos, como é evidente, mas mostra (mais uma) faceta da verdadeira esquizofrenia das sociedades modernas, em que tudo deixou de ser simples e linear nas relações humanas, em que os sinais recíprocos deixaram de ser sinais e passaram a ser equívocos ou a não significar nada. Mas talvez esteja aí o verdadeiro triunfo histórico das mulheres, tornadas exibicionistas objectos de desejo sem outra finalidade que não seja isso mesmo, e que não podem ser tocados sem expresso consentimento, e mesmo assim só enquanto o quiserem...
  • João
    28 nov, 2017 Lisboa 19:06
    A autora deste mau texto apenas permite o comentário favorável. Uma vergonha.
  • Rui
    28 nov, 2017 Lisboa 16:19
    Uma leitura um bocado simplista de um conto reconhecidamente como sendo uma alegoria à transmutação entre o dia e a noite, ou as estações. O vermelho simboliza o sol, a escuridão do estômago a escuridão da noite invernal e o 'caçador' a aurora, ou primavera, que 'rasga' (faça do caçador) a escuridão para permitir o renascimento do sol.
  • Augusto Saraiva
    28 nov, 2017 Maia 12:38
    Grande Senhora; Parabéns! O meu muito obrigado pelo excelente texto. Realmente, a não perder...
  • margarida moreira
    28 nov, 2017 lisboa 09:05
    Cristina, mais uma vez um texto a não perder. muito obrigado pelas suas palavras preciosas. bjs margarida