28 nov, 2017
Bruno Bettelheim, na sua obra sobre os contos de fadas, explicou que as pessoas, para serem equilibradas e produtivas, precisam de encontrar um sentido para a vida, ter uma “plena consciência da existência” e não viver a vida momento a momento. Tal significa “transcender os limites estreitos de uma existência autocentrada” e aceitar que “a fonte de muito mal no mundo é devido às nossas próprias naturezas – a propensão que todo o homem tem para agir agressivamente, associalmente, egoistamente, por raiva ou angústia.”
Formas muito quotidianas desses egoísmos, raivas e angústias estão claramente presentes num dos contos populares que Bettelheim analisa em detalhe. Trata-se do Capuchinho Vermelho, a menina, virtuosa e atractiva, que vai levar o lanche à Avó doente é instada pela Mãe a evitar o bonito bosque, escuro e denso, pois este é habitado pelo Lobo Mau. Apesar das advertências, o encontro entre a Menina e o Lobo acaba por se dar pois esta cede à tentação de se desviar da estrada. Mas o Lobo não só é forte mas sabido e, evitando alertar os caçadores que andam por ali, ludibria a Menina com a sua conversa mansa e deixa-a prosseguir caminho. De facto, iludida pelas palavras do Lobo ou cansada da sua insistência, a Capuchinho fornece-lhe a morada da Avó, onde o Lobo a esperará mais tarde. Uma vez engolida a fragilizada anciã, o Lobo deita-se na sua cama e faz-se passar por esta. Quando a Menina chega é sedutoramente convidada a partilhar o leito com aquela estranha «Avó», acabando por também ser comida.
Há versões diversas para o final da história, sendo que algumas propõem a entrada em cena de um astuto, forte e armado caçador, uma espécie de justiceiro popular, eventualmente parental, que mata e esventra o Lobo Mau, assim salvando milagrosamente Avó e Neta, num jogo intricado de riscos, violências e vitórias da vida sobre a morte. A Menina apercebe-se, então, de que não voltará a «pisar o risco», indo contra os avisados pedidos da Mãe, e acaba por compreender o perigo que representam os seus próprios desejos, libidinosos, já se vê.
Como bem sabemos, a história do Capuchinho Vermelho não é apenas um conto e tal como grande número de relatos populares, trabalhados através de muitas gerações, é uma história de vida. Uma história sobre a sexualidade, o desejo, o poder da sexualidade e do desejo, a violência, a desobediência e os seus riscos, idealizada para ajudar as crianças a construir o carácter, tando aprendendo a resguardando-se de eventuais predadores como a treinar-se para evitar ser um deles. Bettelheim lembra que o Lobo não representa apenas o sedutor masculino, representa todas as “tendências associais e animalísticas que existem dentro de nós”, do mesmo modo que a Avó e a Mãe do Capuchinho representam figuras educativas bastante incompetentes, que mimam sem educar face às dificuldades da vida real e que oferecem uma capa chamativa e erotizante, que a expõe precocemente.
Verbalizar as questões da violência contra as mulheres é um tema muito doloroso e difícil que beneficia destes sábios relatos fantásticos. São verdadeiros objectos transacionais que fazem a ponte entre os medos individuais e a construção dos mecanismos que nos ajudam a modificar realidades inaceitáveis. Quando se marchou, há dias, contra a Violência de Género – todas as aviltantes situações do tráfico humano; das mulheres que vivem, em pleno século XXI, condições sociais e políticas de total desprotecção legal; das que são forçadas à prostituição ou, no calor dos seus lares, agredidas e mortas, ou no emprego e nas ruas, forçadas a algum tipo de prática sexual que não escolheram – é impossível não ter presente a indiferença mais ou menos geral que provoca o cálculo (70 anos) do tempo que demorará a alcançar a paridade nas posições de decisão se não forem adoptadas quotas, ou os 200 anos que custará garantir, sem medidas corretoras, a igualdade salarial entre homens e mulheres. Mas na maioria dos discursos – apesar das mulheres representarem cinquenta por cento da população – parecem sempre questões colaterais, simultaneamente demasiado antigas, de gastas, e excessivamente inovadoras e radicalizadas, por ainda impraticáveis.
Mas as problemáticas citadas são essenciais para o progresso das sociedades e cruciais para o respeito pelos Direitos Humanos. Mesmo sobre brejeirices, assobios, piropos e outras interacções assim de interessantes, a reflexão de Bettelheim deve continuar a inspirar-nos: “O conto de fadas contém em si a convicção da sua mensagem; … Não é preciso dizer o que a Menina do Capuchinho Vermelho vai fazer ou o que será o seu futuro. Devido à sua experiência, ela será capaz de o decidir sozinha.” É isso que desejamos para todas as pessoas, mulheres incluídas: que tenham a oportunidade de decidir por si mesmas um futuro de relevância e dignidade.