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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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NEM ATEU NEM FARISEU

O vidro funde a 1.100 graus

20 out, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Raquel Moleiro escreveu o melhor texto sobre estes incêndios. Ela ataca de frente o mal, não se esconde, não vira a cara. O texto leva-nos para o interior da fornalha.

Qual é o dever de um católico perante o mal? Seja qual for a origem do mal (humana ou natural), como é que um católico deve olhar para essas trevas exteriores? Como é que podemos desenvolver um poder de encaixe à Cormac McCarthy? Como é que um católico pode pensar e escrever sobre uma tragédia tão grande como esta dos incêndios, que transformou o país num cenário de guerra, que fundiu alcatrão e seres humanos na mesma pasta negra e vulcânica?

Ora, não sei se a repórter do “Expresso” Raquel Moleiro é católica. Mas sei que ela escreveu o melhor texto sobre estes incêndios na revista do "Expresso" de 8 de Julho. A meu ver, o texto (“Quem lá foi ainda lá está”) tem o equilíbrio moral que um católico deve ter perante o horror.

Em primeiro lugar, Raquel Moleiro ataca de frente o mal, não se esconde, não vira a cara. O texto leva-nos para o interior da fornalha, sobretudo para a estrada que se apoderou do nosso subconsciente colectivo. Nós, portugueses, passámos a ter medo de andar nas estradas; passámos a ter sonhos ruins com aquela estrada.

“O vidro funde a 1100 graus”, começa Moleiro. “Não havia hipótese de sobrevivência, nem dentro nem fora dos carros”. E depois vem o pior: “Mesmo na penumbra, cada vítima contou-lhes uma história pela posição em que morreu (...) o casal abraçado, resignado. As crianças protegidas debaixo do tabliê (...) Um corpo que alguém tentou apagar com um extintor, deixando-lhe o perfil desenhado a branco no asfalto”.

Vi e ouvi muitas pessoas indignadas com este texto, acusando-o de sensacionalismo tablóide. Ao ler e ouvir estas críticas, pensei em duas coisas. Primeira, a epiderme das redes sociais vai mesmo matar a liberdade do escritor e do jornalista; qualquer tipo de discurso que retire as pessoas da zona de conforto será abatido, até porque esta atmosfera cria auto-censura nos jornalistas, escritores e humoristas. Segunda, o texto de Raquel Moleiro cumpre o primeiro dever moral perante o mal: enfrentá-lo, descrevê-lo com rigor, com frieza, até. Porque é que esta frieza é fundamental? Para se evitar a queda na emoção fácil e na estetização da dor, que é o pecado oposto ao pecado da negação. Não podemos ficar no oito da cegueira que só quer ver o mundo cor-de-rosa, nem podemos caminhar para o oitenta da hipérbole adjectivada.

Esta é a segunda parte do equilíbrio que a visão católica deve ter sobre o mal: se não podemos usar a fé como desculpa para não ver o horror, também não podemos usar a fé para provocar a lágrima fácil através da estetização ou hiperbolização formal do sofrimento. A morte, a violência e a dor compõem uma trindade negra que deve ser tratada com pinças.

O sofrimento não existe para floreados estéticos e emocionais. Se entrar nesses floreados pseudo-poéticos, o jornalista/escritor está a colocar o seu “eu” no centro da dor que foi sentida por outras pessoas. Esse melaço ultra-romântico torna-se assim amoral, para não dizer imoral. Ao invés, o texto de Raquel Moleiro tem sempre o auto-controlo ligado, faz as curvas apertadas na trajectória correcta, seca e enxuta. E, no final, até encontra o verbo essencial da esperança cristã: recomeçar. “Bora lá, segue”.

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  • João Lopes
    20 out, 2017 Viseu 12:26
    Artigo Interessante de HR. Concordo: «A morte, a violência e a dor compõem uma trindade negra que deve ser tratada com pinças».