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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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A falência da verdade

19 abr, 2017 • Opinião de José Miguel Sardica


«Negação» e conta a história verídica de um processo judicial famoso, que abalou o mundo universitário (e editorial) anglo-saxónico há 20 anos.

Chegou aos cinemas portugueses um belo filme, que desafia tanto os académicos como os cidadãos. Chama-se «Negação» e conta a história verídica de um processo judicial famoso, que abalou o mundo universitário (e editorial) anglo-saxónico há 20 anos.

Em 1996, David Irving, o mais famoso dos negacionistas do Holocausto, processou por difamação Deborah Lipstadt, por causa de várias palestras e de um livro em que a historiadora norte-americana acusava o autor britânico de falsear deliberadamente os factos da Alemanha nazi, para sustentar a tese – política (antissemita), e não historiográfica – de que os crimes perpetrados em Auschwitz eram uma pura invenção. Lipstadt e a sua editora tiveram de defender-se num tribunal britânico e venceram o processo, em 2000. Em 2005, Irving foi preso na Áustria e condenado a cumprir uma pena, breve, ao abrigo de uma lei local que proíbe a negação dos crimes nazis.

O negacionismo do Holocausto é o exemplo maior de um mau revisionismo histórico, de um “erro” doloso e criminoso, porque propagador de uma mentira factual. No mundo pós-moderno e na vertigem mediática em que vivemos, o passado e o presente estão à mercê das diversas “narrativas” que os disputam e que, escudadas no relativismo que campeia, se acham, cada uma, mais “verdadeira” do que a outra. E alturas tantas, já nem bem interessa onde está a verdade; apenas se procura construir, com evidente e intencional desprezo pela base factual, pela deontologia profissional e até pela moral e pela ética, a “verdade” que mais convém impor aos outros.

As pessoas precisam de algumas certezas para se guiarem na vida e da garantia maior de que conseguem e podem, sem serem apontadas a dedo, fazer a destrinça entre a verdade e o erro. Hoje, tanto à esquerda como à direita, imperam os profetas da pós-verdade, da meia-verdade, da inverdade, ou da verdade, ou factos, alternativos, relativos, contingenciais e livremente (sobranceiramente) construídos. Casa cabeça é o seu próprio mundo e cada mundo é melhor do que os das outras cabeças. Esta cacofonia não serve ninguém, porque é epistemologicamente enganadora e eticamente lodosa. Como diz Deborah Lispstadt no final do filme, “as opiniões não são todas iguais” (e também as narrativas no espaço público não o são). Uma “verdade alternativa” é uma mentira, e quem teme esta palavra já perdeu a noção daquela hierarquia que tem de haver entre opiniões. Achar que o Holocausto não existiu não é exercitar a liberdade de opinião; é cometer um crime contra factos comprovadíssimos e contra um mínimo de decência e de humanidade. Deixemos o Holocausto, que é tema particularmente sensível. O problema está quando dos malabarismos de retórica em torno desta ferida da Humanidade descemos para os malabarismos discursivos (e éticos) da nossa vida pública actual. Se aceitarmos que tudo pode ser “verdade”, perderemos a capacidade de detectar mentiras e de agirmos contra elas. Por isso mesmo, «Negação» é um saudável alerta para o pântano moral em que muitos vivem.

P.S. Mesmo que não fosse cronista da Rádio Renascença, não esqueceria que a RR completou, há dias, 80 anos de vida – e de serviço público, por parte de uma emissora privada. Ficam os meus parabéns e os votos de muito futuro pela frente. Neste ano de 2017 os motivos de alegria católica são numerosos. Em breve chegará o centenário das aparições de Fátima e, daqui a uns meses, o cinquentenário da Universidade Católica Portuguesa. 10 de Abril de 1937, 13 de Maio de 1917 e 13 de Outubro de 1967: três datas (e duas instituições) do passado que se impuseram à história. E ainda bem!

Comentários
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  • MASQUEGRACINHA
    19 abr, 2017 TERRADOMEIO 21:42
    Essas da "capacidade de detectar mentiras" e do "pântano moral" são muito bem caçadas... Gente crédula, por inocência, ignorância, ou estupidez, houve sempre, tal como mentirosos e vígaros mais ou menos profissionais - alguns até bem intencionados, imagine-se, porque "certas verdades" não estão ao alcance de todos ; ou porque "certas mentiras" até ajudam ao desenvolvimento económico, e logo, evidentemente, ao bem comum. Pois é. O que é algo bizarro é este súbito interesse pela multiplicação das "verdades" - ou talvez nem o seja tanto assim, uma vez que está a desestabilizar os esquemas todos, que funcionavam tão bem... para o bem comum. Se Ortega y Gasset ainda estivesse entre nós, substituiria o conceito de massas pelo de arrozes soltinhos, de diferentes espécies, mas em que cada bago bota opinião. E bota-a porque pode, porque tem computador, cujas maravilhas, por uma vez, eram mesmo verdade... Pois é, isto de vender computadores às massas, transformando-as em grãos de arroz, deu nisto : dizerem e ouvirem cacafonias lodosas. Por outro lado, o tipo de argumentação usada no artigo é, evidentemente, circular : afinal, expressa uma perspectiva subjectiva sobre o assunto, a "verdade" do articulista. Quanto ao Holocausto, e como diz o elementar bom senso, contra factos não há argumentos. De qualquer maneira, as "distorções" (decerto bem intencionadas...) começaram logo em Nuremberga, não foi? Este pântano, Sr. Sardica, para o bem e para o mal, veio para ficar.
  • PJ
    19 abr, 2017 Castelo Branco 12:23
    E o holocausto dos cristãos coptas na síria. E outro cometido pelos turcos otomanos. Há muitos "branqueados" de que os media não falam.
  • Indignada
    19 abr, 2017 Fig Foz 09:55
    Interessante artigo. De facto, o holocausto socialista alemão existiu..., mas foi o único? E actualmente não os há em democracia? Há! O repugnante, é verificar ao longo dos anos, que as democracias fizerm holocaustos, que têm escondido, caso do dos ingleses na India em 1943, quando mataram à fome mais de 3 milhões de indianos. Curiosamente também não se fala dos holocaustos socialistas soviéticos..., porquê? Cumplicidades? Nomeadamente dos católicos, sepulcros caiados de branco
  • António Costa
    19 abr, 2017 Cacém 08:16
    "Achar que o "X" não existiu não é exercitar a liberdade de opinião; é cometer um crime....." para se Mentir, alterar o que se passou é o primeiro passo que se tem que dar. X em Matemática é uma variável, como se fosse uma "caixa". Ainda, há algum tempo verifiquei que existiam historiadores que negavam a invasão da França pelas forças muçulmanas do Emir de Córdova. A Derrota do Emir de Córdova e a sua morte na Batalha de Poitiers, em 732, frente aos francos de Carlos Martel tinha sido aceite como o fim da expansão árabe, a ocidente, depois da conquista da Península Ibérica. Enfim vale "tudo". O que é preciso é "inventar" desculpas, para ir "gastando" os "tomahawk".Gostei do seu artigo.