19 abr, 2017
Chegou aos cinemas portugueses um belo filme, que desafia tanto os académicos como os cidadãos. Chama-se «Negação» e conta a história verídica de um processo judicial famoso, que abalou o mundo universitário (e editorial) anglo-saxónico há 20 anos.
Em 1996, David Irving, o mais famoso dos negacionistas do Holocausto, processou por difamação Deborah Lipstadt, por causa de várias palestras e de um livro em que a historiadora norte-americana acusava o autor britânico de falsear deliberadamente os factos da Alemanha nazi, para sustentar a tese – política (antissemita), e não historiográfica – de que os crimes perpetrados em Auschwitz eram uma pura invenção. Lipstadt e a sua editora tiveram de defender-se num tribunal britânico e venceram o processo, em 2000. Em 2005, Irving foi preso na Áustria e condenado a cumprir uma pena, breve, ao abrigo de uma lei local que proíbe a negação dos crimes nazis.
O negacionismo do Holocausto é o exemplo maior de um mau revisionismo histórico, de um “erro” doloso e criminoso, porque propagador de uma mentira factual. No mundo pós-moderno e na vertigem mediática em que vivemos, o passado e o presente estão à mercê das diversas “narrativas” que os disputam e que, escudadas no relativismo que campeia, se acham, cada uma, mais “verdadeira” do que a outra. E alturas tantas, já nem bem interessa onde está a verdade; apenas se procura construir, com evidente e intencional desprezo pela base factual, pela deontologia profissional e até pela moral e pela ética, a “verdade” que mais convém impor aos outros.
As pessoas precisam de algumas certezas para se guiarem na vida e da garantia maior de que conseguem e podem, sem serem apontadas a dedo, fazer a destrinça entre a verdade e o erro. Hoje, tanto à esquerda como à direita, imperam os profetas da pós-verdade, da meia-verdade, da inverdade, ou da verdade, ou factos, alternativos, relativos, contingenciais e livremente (sobranceiramente) construídos. Casa cabeça é o seu próprio mundo e cada mundo é melhor do que os das outras cabeças. Esta cacofonia não serve ninguém, porque é epistemologicamente enganadora e eticamente lodosa. Como diz Deborah Lispstadt no final do filme, “as opiniões não são todas iguais” (e também as narrativas no espaço público não o são). Uma “verdade alternativa” é uma mentira, e quem teme esta palavra já perdeu a noção daquela hierarquia que tem de haver entre opiniões. Achar que o Holocausto não existiu não é exercitar a liberdade de opinião; é cometer um crime contra factos comprovadíssimos e contra um mínimo de decência e de humanidade. Deixemos o Holocausto, que é tema particularmente sensível. O problema está quando dos malabarismos de retórica em torno desta ferida da Humanidade descemos para os malabarismos discursivos (e éticos) da nossa vida pública actual. Se aceitarmos que tudo pode ser “verdade”, perderemos a capacidade de detectar mentiras e de agirmos contra elas. Por isso mesmo, «Negação» é um saudável alerta para o pântano moral em que muitos vivem.
P.S. Mesmo que não fosse cronista da Rádio Renascença, não esqueceria que a RR completou, há dias, 80 anos de vida – e de serviço público, por parte de uma emissora privada. Ficam os meus parabéns e os votos de muito futuro pela frente. Neste ano de 2017 os motivos de alegria católica são numerosos. Em breve chegará o centenário das aparições de Fátima e, daqui a uns meses, o cinquentenário da Universidade Católica Portuguesa. 10 de Abril de 1937, 13 de Maio de 1917 e 13 de Outubro de 1967: três datas (e duas instituições) do passado que se impuseram à história. E ainda bem!