24 mar, 2017
Há cerca de duas ou três semanas morreu Kenneth Arrow. Não foi o economista mais conhecido — nem talvez o mais influente — do Século XX. Creio que se fizéssemos um inquérito ao público, os nomes referidos seriam provavelmente Keynes ou Friedman — ou mesmo Krugman, considerando o efeito dos media e o facto de ser um autor mais recente.
No entanto, para os economistas académicos, Arrow é um dos grandes génios — se não mesmo o grande génio — da economia do Século XX.
(Fosse o inquérito dirigido aos que estudaram economia na universidade, creio que o nome de Samuelson também viria à baila. Sem desprimor para as contribuições fundamentais do fundador do departamento de economia do MIT, a popularidade de Samuelson deve-se em boa parte ao sucesso do seu livro de texto, algo que Arrow não teve.) (Declaração de interesses: embora tenha conhecido pessoalmente tanto Arrow como Samuelson, estive vários anos com o primeiro e apenas algumas horas com o segundo. É possível que isso crie um viés na minha opinião, mas creio que não.)
A tese de doutoramento de Arrow consiste principalmente num teorema que se enuncia em poucas palavras e demonstra em poucas páginas. Desde pelo menos o Século XVIII, vários académicos — nomeadamente membros da Academia de Ciências de França — tentaram aplicar o método científico ao problema do governo democrático: As pessoas têm preferências sobre possíveis alternativas. Qual a melhor forma de criar um sistema de escolha colectiva que, baseado nessas preferências individuais, chegue à decisão social correcta?
Múltiplas soluções foram propostas ao longo dos séculos: maiorias simples e maiorias qualificadas, escolhas sequenciais e escolhas simultâneas, etc., etc. Arrow mostra que, exigindo algumas condições básicas ao sistema, somos levados à conclusão e que o tal sistema ideal não existe. Por exemplo, a maioria simples tem o problema de frequentemente resultar em escolhas não transitivas: a população prefere A a B, B a C, ... e depois, quando C e A vão a votos, A ganha a C (voltando tudo à estaca zero).
Depois de décadas e décadas de discussão, múltiplos estudos de matemáticos, políticos e economistas, Arrow coloca-nos perante a realidade dura e crua do Teorema da Impossibilidade: não vale a pena procurar o sistema ideal, ele não existe. Dois ou três anos antes, Churchill dizia que "foi dito que a democracia é o pior sistema excepto todos os outros". A piada com que o líder inglês explicava os problemas do governo tem um certo paralelo com a elegância matemática com que o académico americano demonstra o seu teorema da impossibilidade.
Para muitos grandes cientistas, a maior obra é que produzem enquanto jovens, quiçá enquanto alunos de doutoramento. É possível que o princípio se aplique a Arrow. No entanto, ao longo da sua longa carreira, ele veio a fazer mais do que duas ou três contribuições absolutamente fundamentais. Paul Samuelson, seu colega de profissão, disse-me que, se fosse ele a decidir, Arrow deveria ganhar pelo menos dois prémios Nobel. (Em princípio, o Prémio Nobel corresponde a uma contribuição específica. Arrow, o economista que recebeu o Nobel sendo mais jovem, foi galardoado apenas uma vez.)
Numa nota pessoal, Arrow foi uma parte importante do meu choque cultural ao chegar aos Estados Unidos. Logo num dos primeiros dias, recordo-me de a recepcionista do departamento da universidade gritar "Hey, Ken" e dizer-lhe que tinha uma encomenda à espera. Para um português em 1985, qualquer coisa menos formal do que "Professor Arrow" seria falta de respeito. Nos Estados Unidos — e concretamente na Califórnia — utilizar o primeiro nome é relativamente comum, mesmo entre a recepcionista do departamento e o professor mais famoso do mesmo.
A figura de Arrow também divergia do estereótipo que tinha do grande economista que já conhecia dos estudos de licenciatura e mestrado em
Lisboa: diariamente, lá vinha o Ken subindo as escadas ainda com o capacete na cabeça, a mochila às costas e as braçadeiras nos tornozelos, sinal claro que que acabava de chegar na sua bicicleta.
Ken Arrow era um génio, ao ponto de ser um péssimo professor: entusiasmava-se demasiado com as perguntas dos alunos e facilmente perdia o fio à meada; e pensava muito mais depressa do que falava, o que frequentemente tornava difícil seguir um raciocínio. Nem todos são perfeitos.
Finalmente, embora não fosse de forma alguma um simplório, Arrow era uma pessoa simples. Não digo "simples" de forma superficial: conheci muitos prémios Nobel e posso dizer que, em média, não são pessoas nem simples nem particularmente modestas. Neste sentido, Ken era de facto um caso singular: apesar do estatuto de "primus inter pares", não se dava muita importância a si próprio, considerava-se simplesmente mais um entre o grupo de colegas.
Um exemplo que espero não esquecer.