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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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Solidão rima com agitação

01 mar, 2017 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Numa cultura hedonista e fã de modas passageiras, que ignora os seus filiados quando atravessam os processos mais críticos, quão fácil é desistir do filho quando este cresce e rapidamente se afasta da idílica, sorridente e passiva imagem sonhada.

São alarmantes as notícias sobre o nível de consumo de Ritalina entre as crianças e os adolescentes portugueses, para não falar dos estudantes do Ensino Superior, que a usam como uma espécie de doping intelectual. Este consumo, de 6.515.293 doses diárias, conforme relatório do Conselho Nacional de Educação, parece massificado e descontrolado, registando-se um aumento de 77% entre 2011 e 2015. Mais uma maravilha da vida moderna como é experimentada desde a mais tenra infância.

Nos meios urbanos, onde hoje vive a maior parte das famílias, as crianças de classe média, nos apartamentos isolados da rua e da vida, muitas vezes desprovidas de irmãos e de uma família alargada, resistem à monotonia diária entretidas por gadgets e adultos ansiosos que nelas projectam a realização dos seus próprios sonhos e, frequentemente, lhes exigem uma prestação académica impecável e delirante. As crianças de meios economicamente fragilizados ocupam-se desde cedo das fratrias e de muitas outras responsabilidades caseiras, já que os pais, quando empregados, saem de madrugada para obras e limpezas e só voltam quando a noite já vai longa, impossibilitados de acompanhar e de lidar com a escola que os filhos vão frequentando irregularmente, sem sonho e sem esperança. Umas e outras, numa espécie de igualitarismo do destino infantil, estão hoje sujeitas às muitas e pronunciadas oscilações amorosas e existenciais de pais e seus substitutos, e à precariedade económica de uns e laboral de todos. Umas e outras, apesar das diferenças nos rácios de rendimento familiar, partilham um mesmo destino nas horas passadas entregues a ecrãs e na escassez de oportunidades quanto a um padrão adequado de interacção humana, com níveis de tolerância à frustração baixíssimos e uma evidente e agitada infelicidade.

Por outro lado, muitos jovens pais são já o produto de uma sociedade cujas estruturas tradicionais de educação e acompanhamento desapareceram ou se debilitaram, sem que fossem criadas alternativas eficazes. Pais, pois, que precisam de equilibrar o cuidado dos filhos e as inerentes e exigentes tarefas educativas com um história pessoal de toxicodependência, de depressão, de insucesso escolar, de instabilidade amorosa, de violência, de desvinculação ou, simplesmente, uma individualidade narcisista ocupada em crescer, sem ideia do esforço escassamente glamouroso, paciente e desinteressado que significa o exercício da parentalidade. Numa cultura hedonista e fã de modas passageiras, que ignora os seus filiados quando atravessam os processos mais críticos, quão fácil é desistir do filho quando este cresce e rapidamente se afasta da idílica, sorridente e passiva imagem sonhada.

Por estas razões, e outras, pois as histórias individuais são sempre mais complexas e sofridas, não é difícil supor quanto há de ansiedade, de instabilidade, de desconcentração, no comportamento quotidiano de grande número de crianças. Também não é difícil compreender o efeito somado que tudo isso tem na vida escolar e no potencial de aprendizagem das turmas. Esta também não é uma questão isolada das discussões sobre a escolarização que têm marcado a actualidade: não é separável das mochilas atulhadas de manuais, nem da criativa defesa das tablets em substituição dos livros, nem da sobrecarga dos TPC.

Mas, se as crianças estivessem sempre quietinhas é que era grave. Como tão bem explicou Ajuriaguerra, o grande psiquiatra da infância, a pessoa humana não é compreensível sem a sua estreita dependência do meio inter-humano, dos quais se destacam a família e a escola. Quando olhamos apenas a actividade orgânica do ser humano, chamamos-lhe «corpo». Quando a sua actividade orgânica e a sua necessidade de afecto se identificam com os interesses vitais e se unem a outros seres humanos, chamamos-lhe «indivíduo». Mas só quando o «indivíduo» se identifica com os seus semelhantes e consigo mesmo, como projeção espiritual de algo ideal, convertendo-se num ser com valores, direitos e deveres, com autonomia e liberdade e, unido aos demais, se sente moral, se lhe dá o nome de «Pessoa». Educar para o Bem Comum e a vocação de cada Pessoa para participar numa sociedade melhor, provocam alguma agitação mas são as estratégias que melhor constroem a Pessoa e a sociedade. Nada justifica, pois, a massificação de uma intervenção medicamentosa de risco, já que o desenvolvimento infantil produz inevitavelmente crises e conflitos, momentos cruciais que originam tanto fragilidades como novas aptidões. Os sintomas que emergem da mente infantil são sinais de processos significativos no percurso de cada um, talvez até com uma finalidade orgânica, mas não por isso são necessariamente patológicos. Por vezes, são apenas o resultado do desrespeito sistemático pelos ritmos individuais, da competição ou, mais complexamente, consequência da estranheza que se sente quando se vive num «eu» que é, constantemente, idealizado e ignorado, mas nunca realmente reconhecido e importante. Agitação ritma com solidão e desencadeia muitos processos normais de reajustamento e de defesa.

O uso massificado de Ritalina não só é uma vergonha para as sociedades evoluídas mas um sintoma da sua própria doença. Há que inverter o ciclo, acompanhando as famílias, humanizando a escola, organizando as prioridades em função das carências dos mais pequenos e dos mais frágeis. Há que devolver às crianças o interesse em crescer, em descobrir, em brincar. Há que estruturar em sua volta um ambiente de rotinas, de segurança, de respeito, de diálogo, de imaginação, de metas realistas e respeitadoras da individualidade de cada uma. E há, certamente, que melhorar o atendimento médico e psicológico e restringir a disponibilização deste tipo de substâncias a especialistas, capazes de um diagnóstico diferencial digno de crédito e de fornecer uma pertinente psicoterapia.

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  • António Costa
    02 mar, 2017 Cacém 17:05
    Essa droga é usada para o "tratamento" entre outras do THDA. Basicamente as pessoas que são capazes de ter atenção a assuntos "aparentemente" diferentes, relaciona-los e percebe-los à primeira. Como socialmente, só se repetem "cassettes" estas pessoas são consideradas "um perigo" para os governantes que esperam ser "prontamente" obedecidos, sem discussões. Por isso a Ritalina é tão usada, para se poder repetir o que se "aprende" na escola. Pessoalmente nunca consegui "repetir matérias" sem antes, as ter compreendido muito bem. Ritalina? Não obrigado, o lugar dos "papagaios" é na floresta da Amazónia, não na sala de aula.
  • MASQUEGRACINHA
    01 mar, 2017 TERRADOMEIO 19:06
    Fala em "educar para o Bem Comum" e em "vocação de cada Pessoa para participar numa sociedade melhor", e fala lindamente. Mas de que "Bem Comum" e "sociedade melhor" é que fala concretamente? Quem é que os define, com que critérios, com que exemplos e ideais de conduta? Os da economia demencial e manipuladora que governa o mundo e os destinos individuais, para a qual isso das "vocações de cada Pessoa" é conversa de tolinho, ou luxo de filho segundo de gente rica? Ou, talvez, os de quem acha que cada macaco no seu galho, e que dos pobres e mansos será o Reino dos Céus... É que o problema está, de facto, aqui: nos dias de hoje, perante os (péssimos) exemplos a todos os níveis que temos, como pode um pai dizer a um filho "Estuda, sê honesto, trabalha - e serás recompensado"?, sem que o filho lhe responda "Recompensado com o quê? Com uma vida igual à tua, ou pior ainda?". Os gadgets, as solidões e as agitações e as pílulas milagrosas, são apenas sintomas da boa e velha alienação - levada modernamente a um paroxismo individualista, não por narcisismo, mas por simples necessidade de se ser reconhecido, de existir, fora dos parâmetros de um mundo irracional, esquizóide, onde o que é deveras recompensado é a pura ganância, a mentira eficaz, o abuso do outro - tudo coisas para que a Ritalina prepara, facilitando o processo. Recuperar ou criar ideais sociais por que valha a pena viver nunca foi conseguido com falinhas mansas, boas intenções ou moralismos culpabilizantes.