24 fev, 2017
A minha caminhada até à fé teve muitos passos. Um dos últimos é um pouco estranho e talvez impossível de explicar. Mas vou tentar. Há dois ou três anos, a SIC passou um “60 Minutos” centrado no bispo Sean Patrick O’Malley (Boston), o responsável do Vaticano pela investigação aos casos de pedofilia na Igreja. A peça é tensa, sente-se o desconforto de O’Malley.
Afinal de contas, parte da sua Igreja, sobretudo em Boston, havia sido corrompida por este pecado abjecto – uma triste recordação de que a Igreja é feita por homens. Sente-se a tristeza de O’Malley, é verdade, mas também se sente a sua coragem. Ele sabe que a Igreja sofreu um golpe duro, mas também sabe que a sua fé sobreviverá e, em nome dessa centelha, calça galochas teológicas e entra no lodo, no lodo da sua própria Igreja, no seu próprio lodo.
Na altura, esta coragem comoveu-me, porque o mais cómodo seria bancar o papel do puro e recusar dar a cara pela Igreja naquele momento complicado. Aplicando o raciocínio ao meu caso, teria sido mais cómodo para mim, sobretudo como cronista e escritor, continuar fora da Igreja, recusando qualquer contacto com uma instituição marcada por esta sombra moral e mediática. Mas, lá está, esse teria sido o caminho mais fácil. Hoje tenho um certo orgulho em dizer que reentrei na Igreja numa altura em que a sua porta era de facto estreita.
Há dias, já na certeza da minha fé, vi o filme “Spotlight”, que mostra a investigação jornalística que revelou o escândalo de pedofilia na Boston de O’Malley no início do século. É um filme duro. Parei várias vezes para ir beber água, uma clara desculpa para não chorar, uma forma de lidar com o incómodo: centenas de padres da minha Igreja abusaram de crianças de forma sistemática e a hierarquia escondeu o problema. Há cenas que cortam: o repórter “português” (personagem de Mark Ruffalo) a olhar comovido para o coro infantil na igreja; a repórter (personagem de Rachel McAdams) que mostra a investigação final à sua avó católica, sabendo de antemão que aquilo é a destruição de parte do seu mundo. A avó faz o mesmo que eu, “um copo de água, por favor”.
Onde é que um católico encontra aqui conforto? Ao início, não há conforto, não pode haver. Há que lidar com o esterco na nossa própria casa. Salvar a Igreja não passava nem passa por entrar em negação, não passava nem passa por ver aqui uma conspiração dos média, não passava nem passa por encontrar “factos alternativos” para defender a reputação da Igreja.
É que a reputação da Igreja ficou danificada não pelo facto em si, mas sim pelo encobrimento da hierarquia e pelo desejo do paroquiano de não ver. Portanto, apontar o dedo e ficar era e é o único caminho. É preciso ter essa coragem católica para enfrentar o purgatório. E o conforto talvez comece aqui.
Um filme duríssimo sobre a Igreja tem uma estrutura católica do princípio ao fim: um inferno de lodo no início, um purgatório de confissão difícil pelo meio, uma pequena luz no final.
Ter fé é ficar e limpar. Tal como faz o bispo O’Malley, tal como faz o Papa Francisco.