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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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​NEM ATEU, NEM FARISEU

A eutanásia não é analgésico

17 fev, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Nos EUA, a cultura anti-dor levou à comercialização em larga escala de um analgésico fortíssimo, o Oxycontin. Um medicamento que devia ser usado apenas em casos extremos passou a ser usado no dia-a-dia.

É um das tragédias invisíveis do nosso tempo: a epidemia de droga que mata 50 mil americanos por ano. Quando falou em “carnificina americana”, Trump tinha em mente esta epidemia opiácea que varre grande parte da América. Mas como é que começou este apocalipse químico? Na paranóia anti-dor. Se somos viciados no prazer físico, também somos viciados na ausência de qualquer dor física. Nos EUA, esta cultura anti-dor levou à comercialização em larga escala de um analgésico fortíssimo, o Oxycontin. Um medicamento que devia ser usado apenas em casos extremos passou a ser usado no dia-a-dia. Um jovem que joga futebol americano tem dor de costas? Oxycontin. A mamã está com uma terrível dor de dentes? Oxycontin. Quando as autoridades proibiram esta banalização do Oxycontin, o mal já estava feito: centenas de milhares de pessoas já eram opiómanas e, na ausência do medicamento, entraram no consumo de heroína pura e simples como qualquer viciado de rua.

Este é o resultado trágico de uma sociedade formatada para não sofrer. Nós não jogamos futebol americano como o jovenzinho agarrado ao Oxycontin, mas a verdade é que também temos o gatilho rápido na hora de consumir mezinhas químicas para travar qualquer tipo de dor.

Até a mais insignificante das dores passou a ser insuportável. Esta fragilidade acaba por criar um cenário grotesco, quase cómico: a civilização ocidental é a mais avançada da história e nela vive a população mais medicada da história da humanidade; todavia esta é a população que tem medo do frio no inverno e do calor no verão, esta é a população que entra em histeria apocalíptica sempre que há um pequeno surto de gripe. Mas não haverá aqui elementos positivos? Não haverá aqui progresso? Claro que sim. Não me confundam com os fanáticos anti-vacinas e anti-farmacêuticas. Há cem anos os meus bisavós e trisavós morreram cedo com doenças que entretanto foram erradicadas pelo progresso médico. Contudo, é inegável que esta cultura criou uma psique colectiva que não sabe o que fazer à dor.

Criámos um casulo artificial, 100% humano que nos eleva acima da dor física e psíquica. Sim, psíquica. A tristeza e o luto, por exemplo, já são vistos como doenças pela psiquiatria. É como se a tristeza não fizesse parte das nossas vidas, é como se o sofrimento não fizesse parte da nossa educação moral, é como se o ego humano tivesse chegado a um ponto em que considera aceitável e possível autonomizar-se por complexo em relação à natureza.

Problema? O escudo analgésico tem limites. Ícaro paira por aqui. Quando se chega a um idade avançada e a doenças mais complicadas, não há escudo protector que nos valha.

A medicina só pode minorar o sofrimento, não o pode anular por completo. Mas, como é óbvio, uma pessoa que viveu a juventude e a maturidade num vácuo anti-dor está desarmada ao nível mental para lidar com a dor na velhice; em consequência, entra de forma muito óbvia no campo da eutanásia. Portanto, antes mesmo de qualquer debate moral, importa dizer que a eutanásia é sobretudo um absurdo lógico: mata-se a pessoa para se matar a dor; transforma-se a morte num mero analgésico.

Comentários
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  • Rogerio
    20 fev, 2017 Lisboa 09:30
    Exmo Snr Alexandre 19 fev Lisboa 15h 14mn---Queira consultar legislação portuguesa sobre eutanásia e juramento de Hipócrates. Cmcumps
  • Alexandre
    19 fev, 2017 Lisboa 15:14
    Rogério, essa da eutanásia ser crime de homicídio, é talvez a maior anedota contada na medicina moderna. Não se esqueça que a eutanásia só é aplicada com o pedido do paciente e parecer de um médico.
  • Rogério
    19 fev, 2017 Lisboa 11:28
    A eutanásia n é analgésico é crime de homicídio em Portugal e maioria dos Países do Mundo.Na europa o tema é tao anátema que está a ser plano de fundo nas eleições em Março na Holanda o Pais das liberdades apocrificas .Porugal n inventa nada ,sem rasgo para suprir as suas necessidades imediatas entretem-se em copiar causas fraturantes e aberrantes para entreter o palco mediático e teatrializar a politica.Invistam o tempo na investigação ,economia,produçao e deixem-se de facilitismo pro dividendos políticos escandalosos , inúteis e anti-vida. a
  • Vera
    17 fev, 2017 Palmela 18:34
    É isso Henrique Raposo, o luto para alguns, pode ser avaliado como uma doença psicológica! para outros, a pessoa morreu simplesmente porque estava viva e o melhor é esquecer! Neste mundo há de tudo!!! por isso, permanecer neste mundo insano, deve ser mesmo por milagre!
  • MASQUEGRACINHA
    17 fev, 2017 TERRADOMEIO 16:48
    Que de exageros para aqui vão, que de exageros... Mas que má psiquiatria é que o Sr. H. Raposo conhecerá que considere a tristeza e o luto como exemplos de doenças?!! Que eu saiba, é o sofrimento desajustado do objecto, ou exacerbado por tempo excessivo, que pode conduzir a uma situação patológica, de depressão profunda, ideário suicida e alienação afetiva. Que pode - porque, como qualquer psiquiatra mediano sabe, tanto a intensidade como a duração do sofrimento psíquico são casuísticos. Por outro lado, os EUA têm pelo menos a fama de serem dados a excessos: se há uma carnificina por se drogarem, as que também há por enfardarem hambúrgueres banhosos e outras porcarias, ou por se afirmarem a tiro, não são de certeza menores. É tudo a condizer, portanto se são só 50 mil... Percebe-se a ideia do artigo, que pretende abordar a importante questão da relação (deveras esquizóide) das sociedades modernas com a dor e com a morte, mas os exemplos que dá são toscos e mal fundamentados. Depois, quem nos diz que a ciência, num futuro próximo, não desenvolverá alívio para a dor extrema, em qualquer idade? Parece-me até bastante provável, assim o queira a indústria farmacêutica. Considera um "absurdo lógico" matar-se a pessoa para se (lhe) matar a dor. Porquê? Porque ninguém nos garante que a morte seja analgésica? Acredite: para muitos infelizes, assim o queira Deus, que a morte seja efetivamente analgésica.
  • João Galhardo
    17 fev, 2017 Lisboa 13:27
    Infelizmente, discordo da opinião de Henrique Raposo (que nunca conheceu nenhum caso de sofrimento absoluto e pedido de eutanásia), nem de João Lopes. Não se mata a pessoa. Antes, termina-se com o sofrimento e a dor, a pedido do paciente e com aval ou parecer de um médico especializado. A ideia transmitida da morte como mero analgésico é mera estupidez do autor da crónica que por sua má literatura tenta formatar a opinião dos ignorantes.
  • Fernando
    17 fev, 2017 Porto 13:21
    Na mouche, meus parabéns.
  • João Lopes
    17 fev, 2017 Viseu 12:32
    A eutanásia e o suicídio assistido são diferentes formas de matar. Os médicos e os enfermeiros existem para defender a vida, não para matar nem serem cúmplices do crime de outros. Henrique Raposo diz com verdade: «a eutanásia é sobretudo um absurdo lógico: mata-se a pessoa para se matar a dor; transforma-se a morte num mero analgésico».
  • Alexandre
    17 fev, 2017 Lisboa 08:51
    É inacreditável, como Henrique Raposo não tem mais outro tema para escrever. Das duas uma: ou isto tudo é verdadeira falta de imaginação ou este é um lugar vago pela Renascença para fazer propaganda contra a eutanásia.