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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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​Ainda que os sábios aceitem as trevas

14 fev, 2017 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


A escola, se quisermos, serve a democracia. Favorecer a autogestão e a autodisciplina, encorajar o autoconhecimento e o questionamento crítico, o sentido de comunidade, a coesão e a participação desse sítio único serve a democracia.

A escola é um ecossistema complexo, imediatista e potencialmente tumultuoso, onde as finalidades programáticas são permanentemente desafiadas pela realidade circundante, na pessoa e na noite vivida por cada aluno.

Disso deu provas o estudo recentemente levado a cabo por Alexandre Henrique, dedicado à indisciplina em sala de aula. Segundo o autor, num universo de 53.664 alunos houve 11.000 participações e a maioria das ocorrências teve lugar durante o 2° período (quando o verão ainda está longe e as más notas já fizeram estragos) e sobretudo com alunos do 3° ciclo (o cérebro, o desafio à autoridade, a passagem ao ato, têm o seu papel, mas nada supera uma transição de ciclo abrupta e desacompanhada). Muitos dos alunos em causa foram afastados da sala de aula para que a lição pudesse continuar. Do ponto de vista da reflexa teórica, há décadas que se propõe um novo perfil de professor mas a cultura escolar revela dificuldades em renovar-se, instada a acomodar-se às múltiplas mudanças políticas do turno eleitoral.

Como é próprio das sociedades materialistas, houve quem advogasse pela prioritária introdução das várias vagas de tecnologias da comunicação como instrumentos de recaptura da motivação dos alunos, mas a prática, mais uma vez, mostrou que a escola é, sobretudo e essencialmente, um affaire entre pessoas. A confusa fragilidade que atingiu essa relação pede ao papel de instrutor do docente não só que desenvolva actividades de ensino adequadas aos alunos e à implementação do currículo mas, também, e cada vez mais, à estruturação e equilíbrio da comunidade educativa. Sob o ponto de vista do ambiente de aprendizagem, insta-o a evoluir de gestor das actividades para líder do grupo, dominando a planificação preventiva (já que a indisciplina se instala quando os alunos estão cansados ou não sabem o que devem fazer) e – sendo uma novidade em termos de políticas educativas, coincide com tudo aquilo que conhecemos nos professores que respeitámos e apreciámos – o reforço do seu papel enquanto pessoa, ou seja, um adulto saudável e responsável que estabelece interacções humanas positivas.

Esta qualidade humana do profissional da educação pode definir-se com precisão: capacidade para demonstrar preocupação e expectativas elevadas face ao desempenho académico, para invocar as consequências do comportamento indesejável de forma assertiva, para ensinar os alunos a fazer escolhas corretas e para providenciar amplas oportunidades destes experimentarem o sucesso; potencial para se controlar a si mesmo, comunicar regular e claramente com os alunos, usar e reforçar regras explícitas e justas e conter persistentemente o comportamento improdutivo; centração no comportamento e não nas características dos alunos; ser um modelo do comportamento desejável. Muitos são, no entanto, os obstáculos que desafiam a competência do melhor dos docentes: as famílias não têm capacidade para educar, a sociedade oferece poucas perspectivas de integração e sucesso (para quê estudar?), as comunidades sujeitam demasiadas crianças e muitos adolescentes ao consumo de droga, ao abuso, à negligência, à criminalidade, à pobreza, à marginalidade, à depressão, à exclusão face ao modelo “classe média ilustrada” que a escola veicula como padrão. A escola está, pois, obrigada a acomodar um aumento crescente da diversidade social e dos padrões de comportamento, alargando exponencialmente o espectro das necessidades dos alunos.

É difícil conseguir que a escola seja inclusiva, crie um clima seguro, protector, orientador, responsivo e um ambiente lúcido e tranquilo. Providenciar o amplo quadro de soluções de gestão necessário à individualização do ensino não é exequível sem se fazer acompanhar a instrução e a educação de aconselhamento técnico apropriado, sem se trabalhar seriamente o desenvolvimento de competências emocionais, morais e sociais e o interesse pela aprendizagem. É preciso implementar uma rede estável de apoios, de competências e de intervenções na gama adequada ao complexo ecossistema em presença. São necessárias estratégias de integração curricular e de ensino para o sentido (do que se ensina, da aprendizagem em geral, do sentido da vida). Do mesmo modo é indispensável instaurar uma cultura de diálogo interactivo, de socialização (inclui o usufruto dos recreios, das instalações sanitárias, das cantinas, …), de real participação dos alunos e das famílias (e aqui é mesmo democracia directa), incluindo objectivos de ensino mais abertos, para se poder ensinar para observar, para pensar e para comunicar e não apenas para responder ao teste.

Trata-se, pois, de uma mudança da sociedade como a comunidade política que requer a revalorização do papel do docente e uma renovação do papel do aluno, num momento histórico em que a escola está vocacionada para o emprego mas não há trabalho para todos, ninguém sabe para que serve um diploma e muitos questionam a serventia da escola. Mas a escola, se quisermos, serve a democracia. Favorecer a autogestão e a autodisciplina, encorajar o autoconhecimento e o questionamento crítico, o sentido de comunidade, a coesão e a participação desse sítio único, onde a sociedade deve investir e rever-se no seu melhor, no seu “deve ser”, serve a democracia. É prioritário um consenso e um pacto educativo em torno da escola, porque a escola tem de ser melhor do que a sociedade, para podermos continuar a viver em sociedade. As casas de banho são muito importantes, e os ginásios, e os quadros electrónicos mas, na escola, o que é relevante e insubstituível é a pessoa. E aquilo que as pessoas são concentra-se, essencialmente, nos seus valores: dignidade, respeito, verdade, colaboração, pertença, autodisciplina, autonomia, conexão emocional, rede social, exigência, segurança, diálogo, partilha. É com esperança que aguardamos a chegada do Perfil do Aluno para o século XXI (embora isto do «século XXI» seja um bocadinho exagerado), mas também precisamos de consensos e de pactos sobre a escola, sobre a formação, a qualidade e a dignidade da vida profissional dos professores e a educação e participação efetiva das famílias. Mesmo que os sábios aceitem as trevas, é preferível amar a luz.

Comentários
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  • Indignada
    15 fev, 2017 Fig da Foz 10:09
    Esta autora fala em democracia como a malta de esquerda..., só da boca para fora. A realidade nas escolas, não é tão complexa como diz, Quem a complica, é quem não tem vontade de resolver os seus problemas..., haja boa vontade! Bastava que houvesse Autoridade..., o resto vinha por acréscimo. Há quem viva do sofrimento alheio e como tal, não interessa acabar com os problemas escolares!
  • ADISAN
    14 fev, 2017 Mealhada 16:30
    "A passagem ao ato". Assim é que nem ato nem desato. Quando os "iluminados" escrevem assim, que será da língua portuguesa daqui por alguns anos. Deixem-se de arremedar os "papagaios" e aprendam o português correCto!