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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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​NEM ATEU, NEM FARISEU

“Silêncio” não é relativista

27 jan, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Passar à clandestinidade, mentindo ao poder político, pode ser um acto cristão. Nós não devemos obediência aos ídolos nacionalistas nem sacralizamos o direito positivo. A verdade está noutro lado.

Muitos cristãos em Portugal e nos EUA consideram que o filme “Silêncio” é uma concessão ao relativismo pós-moderno. Apesar de bem-intencionada, esta visão não faz sentido, porque contamina com o ar do século XXI um filme que é uma parábola do inferno.

O filme passa-se no Japão do século XVII, mas podia ter como palco o Portugal das invasões francesas ou a Síria de hoje. Não devemos portanto contaminar com o ruído do nosso tempo uma metáfora universal e intemporal. Sim, claro que podemos e devemos combater o relativismo epistemológico pós-moderno. Afinal de contas, não foi Trump que inventou o pós-verdade. A esquerda pós-moderna é que passou as últimas décadas a destruir a dignidade académica e moral da verdade, quer através do relativismo epistemológico (não há verdade empírica e objectiva, só percepções) e do relativismo cultural (não há verdade moral universal, o bem é sempre relativo ao contexto).

Mas levar este combate para o “Silêncio” é estar a confundir as coisas. Até porque o filme não é uma aprovação da privatização da fé. É verdade que um dos efeitos da atmosfera pós-moderna e ateia em que vivemos é a retirada da igreja e do discurso religioso para a vidinha privada e a monopolização do espaço público pelo discurso laico, positivista, científico, legalista, etc. Podemos e devemos combater esta cultura. Aliás, esta coluna é um humilde esforço nesse sentido. Ser cristão não é fechar a fé no quarto, é falar à cristão na cidade. Mas, mais uma vez, é um erro associar esta luta ao filme “Silêncio”.

Tendo em conta que a personagem central do filme (o jesuíta Rodrigues) faz uma apostasia pública para depois desenvolver em privado a fé, não poderíamos assumir que Scorsese defende a tal privatização pós-moderna da religião? Não. É um absurdo comparar a paz e a tranquilidade da nossa sociedade ocidental em 2017 com aquele Japão infernal. Se queremos fazer comparações históricas, devemos comparar aquele Japão não com o Ocidente de 2017, mas com a Síria ou Iraque de 2017. Nestes países, os cristãos estão a ser assassinados agora mesmo, as cristãs estão a ser violadas agora mesmo, as crianças cristãs estão a ser vendidas agora mesmo; além disso, os islamitas estão a exigir aos cristãos uma renúncia pública da sua fé e uma conversão ao islão; se recusarem, serão assassinados ou ficarão sem os filhos. Esta é mais ou menos a situação que o jesuíta Rodrigues enfrenta no filme.

Portanto, assumir que “Silêncio” é um elogio do relativismo e da apostasia é o mesmo que aceitar como genuína a conversão ao islão de um cristão que está a ver uma faca islamita encostada à garganta da filha. Quem sou eu para considerar como apóstata ou relativista um homem que sabe que a sua filha pode ser violada ou vendida como escrava sexual se não renunciar ali mesmo à fé? O que isso importa perante a gravidade da situação? E, já agora, qual é a validade jurídica e moral de uma apostasia feita debaixo de tortura? Rodrigues faz apostasia não para se salvar a si mesmo, mas para salvar outras pessoas. Ele toma aquela decisão não no conforto de uma sociedade próspera e pacificada, mas no meio do inferno. E, no inferno, o mal-menor não é relativismo, é decência. No inferno, é impossível defender a fé sem sujar as mãos, sem beliscar o legalismo. Não perceber isto é cair na arrogância do fariseu que julga os outros só através da letra da lei.

Assumir que “Silêncio” é um elogio ao relativismo só porque os jesuítas renunciaram publicamente à fé é o mesmo que dizer que as igrejas católicas clandestinas que resistiram a diversas ditaduras ateias também eram relativistas.

Tomas Halik, por exemplo, foi padre clandestino na Praga comunista. Não conheço a história dos primeiros cristãos das catacumbas pré-Constantino, mas aposto que esse cenário não terá sido muito diferente daquele que Rodrigues enfrentou no Japão e que os checos e polacos enfrentaram nos períodos mais negros da repressão comunista. Passar à clandestinidade, mentindo ao poder político, pode ser um acto cristão. Nós não devemos obediência aos ídolos nacionalistas nem sacralizamos o direito positivo. A verdade está noutro lado. A prova disso é que o cristianismo sobreviveu no Japão até hoje. Quando o Japão do século XIX (era Meiji) se abriu de novo ao exterior, alguns visitantes ocidentais repararam que muitos japoneses ainda eram cristãos. A clandestinidade resultara. Se tivesse sido o mártir perfeito na busca arrogante da cruz, Rodrigues não teria contribuído para esta sobrevivência da fé no inferno.

"O meu chamamento foi fazer filmes". Scorsese tinha "Silêncio" à sua espera desde sempre
"O meu chamamento foi fazer filmes". Scorsese tinha "Silêncio" à sua espera desde sempre
Comentários
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  • Alexandre
    29 jan, 2017 Lisboa 20:12
    Esta crónica está cheia de preconceito e medo da verdade. Quando isso acontece, a reposta é o exagero das palavras. O próprio filme de Scorcese é apenas uma versão dos factos; um obra de ficção. Não existe ali nada que seja verdade. Existem os bons (os jesuítas) e os maus (os japoneses, senhores da terra). Aliás, os conselhos dados pelo inquisidor ao herói do filme são sábios. No entanto, os mesmos são dados por um actor que faz o papel de vilão. Cada frase dita por este, é arrastada por defeitos que fazem o expectador sentir desgosto pela mesma figura ou personagem. A obra cinematográfica de Scorcese é parcial, a favor dos jesuítas e totalmente contra a cultura japonesa dessa época. Por isso, não há que definir conceitos e preconceitos sobre ficções, quando ainda por cima são dadas de uma maneira leviana, pois o intuito do realizador com este filme é o prémio da academia dos óscares (o mérito). Não é a verdade dos factos.
  • Vera
    27 jan, 2017 Palmela 22:12
    Eu não vou comentar porque não conheço o filme! 'o silêncio', mas só quero referir o seguinte "uma igreja clandestina" é o quê? uma casa onde se reza sem pároco! ou que não tem arquitectura de igreja, com sinos? o que eu conheço são cristãos clandestinos, porque não festejam o Natal; isso é que eu não consigo perceber! uma festa Universal, onde protestantes, ortodoxos, evangélicos, católicos e outros tantos cristãos festejam, existem uns que não festejam e dizem-se Cristãos! porque será? eu sei que se baseiam, mais no antigo testamento,será por isso! se calhar acham que Jesus ainda não nasceu,ainda há-de nascer... Henrique Raposo, no último artigo que escreveu,eu não tive intenção de ofendê-lo! mas é que eu já li muitos outros artigos seus sobre outros assuntos e sempre gostei do que escreveu! mas desta vez você escolheu um tema tão complexo, que fica tudo distorcido, porque é mesmo assim! quando nos deitamos a adivinhar estes assuntos das religiões é uma carga de trabalhos que ninguém se entende! eu digo-lhe sinceramente que só consegui perceber os textos da Bíblia quando encontrei Decartes, só ele sabe explicar a existência de Deus de maneira que eu percebo e a partir daí comecei a perceber os textos Bíblicos,mas o antigo testamento é muito confuso e disso nenhum filósofo fala! é claro que tudo tem um princípio e foi por aí que começou! mas tentar explicar aos outros de que fala o antigo testamento e os medos que existem neles,que deixam as pessoas confusas! é desperdício.
  • MASQUEGRACINHA
    27 jan, 2017 TERRADOMEIO 17:14
    Explicou-se melhor. Aliás, aplicando (e bem) ao caso concreto os relativismos epistemológico e cultural que tanto parece desprezar, como frutos da esquerda pós-moderna, destrutivos da dignidade académica e moral da verdade. Como o próprio articulista comprova, não só não são nada disso, como são metodologias indispensáveis à sua busca - sejamos nós samaritanos ou publicanos ou coisa nenhuma. Fala das atrocidades cometidas contra os cristãos, e fala bem - mas não esqueça, por favor, os horrores sofridos também por gente de outras fés às mãos dos islamitas, para quem basta não ser islâmico, ou até ser islâmico mas não exatamente como eles querem, para se ser perseguido. Na análise que faz, parece esquecer que os tais "mártires perfeitos na busca arrogante da cruz" (entre os quais, espero, abra uma excepção para Cristo) foram a pedra absolutamente basilar da Igreja, até por conferirem credibilidade à fé cristã, sobretudo no que toca à Ressurreição. Perder a vida, ou assistir à tortura e morte de seres amados, em defesa de uma crença, seja ela qual for, é notável de heroísmo ou de estupidez? Se Rodrigues não tivesse abjurado, o cristianismo teria desaparecido no Japão, pelo que a abjuração se justificou? Se Pedro não tivesse renegado Cristo, se Judas não tivesse...? Quer o Sr. H. Raposo ainda mais relativismo? Em termos de fé e de crença (de qualquer fé ou crença), a abjuração é sempre pecado e/ou cobardia. Compreensível, perdoável, humano. Mas não defensável como valor absoluto.
  • António Costa
    27 jan, 2017 Cacém 14:37
    O Relativismo não quer dizer que o Mal e o Bem são relativos. O que o Relativismo significa é a Lei Física ou o processo Lógico chega a conclusões diferentes, se partimos de inícios diferentes. O que Einstein disse foi que o "local físico no espaço" NÃO chega para definir "os inícios diferentes". O que Einstein disse foi que o tempo era relativo, não absoluto. Agora as condições "iniciais diferentes" existem SEMPRE, só temos é que ser mais "cuidadosos". Só isso.
  • Indignada
    27 jan, 2017 Fig. Foz 14:05
    Sr. Pedroso, bom artigo. A Moral, a Justiça são bens absolutos, não relativos! Contudo, na sua aplicação, para que o sejam, há que ter em conta o contexto, as limitação. Só aí é que há algum relativismo..., nada mais!
  • Miguel Botelho
    27 jan, 2017 Lisboa 09:03
    Será que Henrique Raposo tem mais alguma coisa para dizer, a não ser as propostas teológicas da sexta-feira? Deverão existir algumas revistas religiosas onde Henrique Raposo possa escrever. Infelizmente, é triste ver a Renascença a dar o seu espaço de opinião para quem tem tão pouco para dizer.