27 jan, 2017
Muitos cristãos em Portugal e nos EUA consideram que o filme “Silêncio” é uma concessão ao relativismo pós-moderno. Apesar de bem-intencionada, esta visão não faz sentido, porque contamina com o ar do século XXI um filme que é uma parábola do inferno.
O filme passa-se no Japão do século XVII, mas podia ter como palco o Portugal das invasões francesas ou a Síria de hoje. Não devemos portanto contaminar com o ruído do nosso tempo uma metáfora universal e intemporal. Sim, claro que podemos e devemos combater o relativismo epistemológico pós-moderno. Afinal de contas, não foi Trump que inventou o pós-verdade. A esquerda pós-moderna é que passou as últimas décadas a destruir a dignidade académica e moral da verdade, quer através do relativismo epistemológico (não há verdade empírica e objectiva, só percepções) e do relativismo cultural (não há verdade moral universal, o bem é sempre relativo ao contexto).
Mas levar este combate para o “Silêncio” é estar a confundir as coisas. Até porque o filme não é uma aprovação da privatização da fé. É verdade que um dos efeitos da atmosfera pós-moderna e ateia em que vivemos é a retirada da igreja e do discurso religioso para a vidinha privada e a monopolização do espaço público pelo discurso laico, positivista, científico, legalista, etc. Podemos e devemos combater esta cultura. Aliás, esta coluna é um humilde esforço nesse sentido. Ser cristão não é fechar a fé no quarto, é falar à cristão na cidade. Mas, mais uma vez, é um erro associar esta luta ao filme “Silêncio”.
Tendo em conta que a personagem central do filme (o jesuíta Rodrigues) faz uma apostasia pública para depois desenvolver em privado a fé, não poderíamos assumir que Scorsese defende a tal privatização pós-moderna da religião? Não. É um absurdo comparar a paz e a tranquilidade da nossa sociedade ocidental em 2017 com aquele Japão infernal. Se queremos fazer comparações históricas, devemos comparar aquele Japão não com o Ocidente de 2017, mas com a Síria ou Iraque de 2017. Nestes países, os cristãos estão a ser assassinados agora mesmo, as cristãs estão a ser violadas agora mesmo, as crianças cristãs estão a ser vendidas agora mesmo; além disso, os islamitas estão a exigir aos cristãos uma renúncia pública da sua fé e uma conversão ao islão; se recusarem, serão assassinados ou ficarão sem os filhos. Esta é mais ou menos a situação que o jesuíta Rodrigues enfrenta no filme.
Portanto, assumir que “Silêncio” é um elogio do relativismo e da apostasia é o mesmo que aceitar como genuína a conversão ao islão de um cristão que está a ver uma faca islamita encostada à garganta da filha. Quem sou eu para considerar como apóstata ou relativista um homem que sabe que a sua filha pode ser violada ou vendida como escrava sexual se não renunciar ali mesmo à fé? O que isso importa perante a gravidade da situação? E, já agora, qual é a validade jurídica e moral de uma apostasia feita debaixo de tortura? Rodrigues faz apostasia não para se salvar a si mesmo, mas para salvar outras pessoas. Ele toma aquela decisão não no conforto de uma sociedade próspera e pacificada, mas no meio do inferno. E, no inferno, o mal-menor não é relativismo, é decência. No inferno, é impossível defender a fé sem sujar as mãos, sem beliscar o legalismo. Não perceber isto é cair na arrogância do fariseu que julga os outros só através da letra da lei.
Assumir que “Silêncio” é um elogio ao relativismo só porque os jesuítas renunciaram publicamente à fé é o mesmo que dizer que as igrejas católicas clandestinas que resistiram a diversas ditaduras ateias também eram relativistas.
Tomas Halik, por exemplo, foi padre clandestino na Praga comunista. Não conheço a história dos primeiros cristãos das catacumbas pré-Constantino, mas aposto que esse cenário não terá sido muito diferente daquele que Rodrigues enfrentou no Japão e que os checos e polacos enfrentaram nos períodos mais negros da repressão comunista. Passar à clandestinidade, mentindo ao poder político, pode ser um acto cristão. Nós não devemos obediência aos ídolos nacionalistas nem sacralizamos o direito positivo. A verdade está noutro lado. A prova disso é que o cristianismo sobreviveu no Japão até hoje. Quando o Japão do século XIX (era Meiji) se abriu de novo ao exterior, alguns visitantes ocidentais repararam que muitos japoneses ainda eram cristãos. A clandestinidade resultara. Se tivesse sido o mártir perfeito na busca arrogante da cruz, Rodrigues não teria contribuído para esta sobrevivência da fé no inferno.