17 jan, 2017
Italo Calvino escreveu (La città invisibili, 1972): “O inferno dos vivos não é algo que está para vir; há um, o que já existe aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que formamos estando juntos. Há duas maneiras de não o sofrer. A primeira é fácil para muitos: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até ao ponto de deixar de o ver. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuos: procurar e saber quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e fazer com que dure e dar-lhe espaço.”
Esta é a minha homenagem a três homens que nos deixaram nos primeiros dias de Janeiro, depois de, arriscadamente, terem disposto das suas longas vidas em defesa daquilo e daqueles que não são inferno.
Zygmunt Bauman, reconhecido pela identificação da “vida líquida” e das múltiplas formas da sua angústia e incerteza, dedicou-se lucidamente à defesa da sociedade como acordo e participação, mas também como o poder que confere dignidade ao acordado e ao partilhado. A sociedade é esse poder porque, como a natureza, já cá estava antes de nascermos e continuará a estar muito depois de termos desaparecido. Viver em sociedade – encontrar um acordo, partilhar e respeitar o que acordámos – é, pois, a única receita que há para sermos felizes. Ainda assim, essa felicidade, ameaçada pela perda do sentido e da eternidade, por si só, não durará para sempre. É necessário que nos empenhemos em a desenvolver e em a proteger. A possibilidade de existirmos num arranjo de caçadores curtidos que se dedicam a predar os mais fracos parecia a Bauman um sério risco para a vida de todos e avisava, na esperança de os ver surgir, que os homens e as mulheres que se dedicassem a lutar por descobrir “quem e aquilo que não é inferno” teriam de enfrentar todo o tipo de pressões para que se aceite como inferno aquilo que realmente o é.
Daniel Serrão também nos deixou há dias. Muitos dos mais conhecedores o identificam como a figura nacional mais influente no desenvolvimento da bioética. Credenciado por uma reconhecida competência científica e uma abrangente cultura foi, toda a sua vida adulta, um brilhante estudioso que, na sociedade e na Igreja, manteve vivo dos mais corajosos diálogos entre os resultados da moderna investigação e os perenes valores do Magistério, cuja reflexão ajudou a progredir. Será sempre lembrado como uma voz poderosa e clara em defesa da vida, identificando uma parte substancial do inferno a que Calvino se refere com o aborto e a eutanásia, a que vigorosamente se opôs, como “soluções” egoístas, obsoletas e indignas para a nossa condição comum. A sua longa, intrépida e inteligente vitalidade perdurará entre todos aqueles que puderam beneficiar da sua benévola e desafiadora influência, assim como dos seus esforços conscientes para construir uma sociedade mais justa e mais moderna.
E ainda uma palavra para Mário Soares. Há anos, quando alguns assinalaram o início do declínio da sua providencial intuição estratégica, tive oportunidade de, aqui mesmo, agradecer a liberdade que, em grandíssima parte, devemos a esse “monarca”, e de sorrir um pouco com tudo o que lhe perdoámos, com maior ou menor mágoa, conforme aquilo que ganhámos ou perdemos durante os anos conturbados do PREC. Agora, as evocações proporcionadas pela sua morte – objecto de um notável reconhecimento internacional – pareceram-me sublinhar como, para o bem e para o mal, e com todas as virtudes e disfuncionalidades inerentes, o partido que fundou tinha, também, a marca, interessante e distintiva, de uma grande família política. Mas esse estilo genealógico de estar na vida pública parece ter desaparecido com a falta de herdeiros naturais, o afastamento deliberado dos melhores e a luta provocada pelo oportunismo de alguns dos entretanto surgidos. Tal como a fragilização do projecto europeu, este deve ter sido um dos maiores pesares do antigo Presidente. Fica-nos o seu exemplo de coragem e a democracia que, em grande parte, dela resultou.
Finalmente, o desaparecimento destes líderes recorda-nos que as sociedades de hoje não vivem, apenas, a cíclica orfandade resultante da perda das suas mais influentes figuras. E o tempo de hoje já não é o tempo da reconfiguração geracional dos passados mas a exclusão do passado e do futuro ou, como Bauman afirmou, viver esta experiência, sem precedentes, de existir fora da transcendência e da necessidade de imortalidade. “Nunca estivemos aqui. Falta ver como é o «estar aqui» e quais as consequências duradouras que isto tenha”, escreveu. “Isto” é particularmente relevante quando, a horas de uma nova América, o próximo líder – eleito – demonstrou uma total falta de julgamento e de interesse pela adopção de uma postura de Estado e, ao contrário de Bauman, Serrão ou Soares, uma abrangente incapacidade para nos guiar até um final feliz. Onde será que vamos parar?