14 dez, 2016
A tomada de posse de António Guterres como novo Secretário-Geral da ONU eleva um português ao topo do mundo diplomático e político internacional. Para lá das simpatias que cada um possa ter, ou não, pela figura, o momento é assim de justificado regozijo para Portugal.
Há 20 anos, quando Freitas do Amaral foi Presidente da Assembleia-Geral das Nações Unidas, Guterres era Primeiro-Ministro deste nosso pequeno país. Decerto não sonharia ocupar o cargo mais importante da mais importante organização mundial. De facto, em importância, o cargo de Guterres supera – porque é global e não regional – a presidência da Comissão Europeia, exercida durante uma década por Durão Barroso. Ao suceder a Ban Ki-moon, Guterres tornou-se o 9.º Secretário-Geral da ONU (ou 10.º, se incluirmos na lista o interino Gladwyn Jebb, que ocupou o lugar em 1945-46). E uma vez mais, o titular do cargo provém de um país pequeno, como aconteceu com todos os seus antecessores, oriundos da Noruega, Suécia, Birmânia, Áustria, Peru, Egito, Gana e Coreia do Sul.
Diz-se que de Nova Iorque se vê o mundo inteiro. Guterres terá ocasião de o ver e de tentar fazer dele um lugar (um pouco) melhor. Mesmo com defeitos, a ONU é uma extraordinária criação humana, que garantiu ao globo décadas de paz geral – algo que as suas malogradas antecessoras, a SDN e as conferências de arbitragem e desarmamento, desde finais do século XIX a 1945, nunca conseguiram fazer.
O século XX foi marcado a ferro e fogo até à II Guerra Mundial. Mas a partir de 1945, a ONU conseguiu evitar muitos conflitos, minorou outros e multiplicou a sua acção e obra através dos vários organismos internacionais que dela dependem, como o ACNUR, que fez de Guterres o melhor dos especialistas na candente questão dos refugiados. Os unilateralistas ou os “falcões” diplomáticos, para não falar dos ditadores e tiranos que por aí subsistem, não gostam muito da ONU. E a instituição, hoje com 193 países, passou por maus bocados, com escândalos financeiros e de corrupção e acusações de desmandos de forças de intervenção em vários terrenos. Mas o mundo seria sem dúvida pior sem a ONU. Sobretudo este nosso mundo do século XXI, onde a (des)ordem internacional alimenta uma era de grande incerteza.
Para reforçar o papel da ONU no século XXI, Guterres parte com um capital de confiança elevado. Visto de Portugal, e para quem se lembra do “guterrismo”, de 2001 e do “pântano”, ele é a prova de que em política as mortes nunca são definitivas. Visto lá de fora, é um humanista dedicado e com provas dadas, um diplomata de multilateralismo, poliglota, “multitasking” e capaz de consensos alargados.
Os desafios de Guterres são momentosos – a começar por alguma reforma e actualização da própria ONU. Um dos grandes passos seria, por exemplo, rever a composição dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, substituindo a França e a GB pela União Europeia e integrando, já ou a prazo, a Liga Árabe e a União Africana. Isto espelharia mais o mundo de hoje e os seus grandes interlocutores.
Não há que ignorar, também, que talvez um dos maiores escolhos do mandato de Guterres esteja ali bem perto, em Manhattan ou na Casa Branca. Donald Trump já disse que a ONU custa muito dinheiro aos EUA e que a América não pode continuar a ser o polícia do mundo. Sem os EUA, todavia, a ONU – como a SDN – arrisca tornar-se uma bela ideia… amputada de meios. Será por isso interessante ver como o português bonacheirão, bem falante e envolvente conseguirá relacionar-se com o Presidente truculento, cortante e isolacionista. Ao fim ao cabo, os dois vão ser donos do mundo nos próximos anos.