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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Melancolia

23 mar, 2018 • Opinião de Henrique Raposo


Os sinos que ensurdecem a nossa cabeça já entoaram noutros lados e voltarão a entoar. Estamos unidos na melancolia e no mistério do medo.

Tenho um sonho idêntico a este quadro de Chirico, “Mistério e Melancolia de uma Rua” (1914). É um dos carrascos que faz plantão no meu sono: estou andando na rua no sentido sul – norte, de baixo para cima; vou encostado à parede do prédio à minha direita e sei que tenho de virar à direita na próxima esquina; no sentido leste - oeste, da direita para a esquerda, aproxima-se uma pessoa, está na rua que eu terei de percorrer assim que dobrar a esquina; só lhe vejo a sombra que se projecta assim, tal e qual como Chirico a pintou; momentos antes de virar a esquina e olhar de frente para a figura, entro em hiperventilação e acordo com medo. Tenho este sonho há tanto tempo que não sei responder a esta pergunta: o sonho é anterior à primeira vez em que vi o quadro de Chirico? Não sei. Seja qual for a resposta, comovo-me sempre que regresso a Giorgio de Chirico (1888-1978). Através do medo, ele leva-me a Deus e a uma ideia de humanidade partilhada com perfeitos estranhos que são meus irmãos.

A cultura do “óbvio” e da dessacralização do mundo diz-me que o sonho surgiu depois de eu ter visto o quadro pela primeira vez, entre o final do liceu e início da faculdade. Não tenho problemas com a tese. Nesta hipótese, o quadro foi um detonador visual que uniu vários pontos, vários medos do meu passado. Como diz Cormac McCarthy, o subconsciente funciona por imagens, por ícones, por metáforas visuais e não por palavras.

O meu subconsciente criou assim uma curta-metragem a partir desta matriz. E isto é espantoso. Como é óbvio, nunca conheci Chirico. É um homem de outro tempo, de outro país, mas a sua arte comunica com o que tenho de mais íntimo. Um quadro italiano de 1914, anterior às transformações morais e sociais provocadas pela I e II Guerras, tornou-se numa chave de uma cabeça portuguesa nascida um ano depois da morte do pintor em questão. Não há aqui cinismo que nos valha. Como é que se evita a comoção perante o poder litúrgico da arte que comprova a existência de uma humanidade partilhada, universal e intemporal? Sim, é verdade que esta partilha é feita no mal e no medo, mas não deixa de ser uma partilha entre épocas, entre classes, entre países, entre línguas.

Estou porém desconfiado de que a hipótese mais correcta é a outra: eu já sonhava com aquele quadro antes de o ver, ou melhor, Chirico foi assombrado por pesadelos idênticos aos meus. Eu, Chirico e milhões de outros seres humanos partilhámos, partilhamos e partilharemos aquele pesadelo. E, de novo, não há cinismo que trave a comoção perante a ideia de que percorremos todos o mesmo chão comum, mesmo que seja um chão de dor, medo e mal.

Mas talvez seja este, afinal, o papel da arte: comunicar que a dor que uma pessoa está a sentir aqui e agora não é uma dor isolada, específica e sentida apenas por essa pessoa. Não estamos sozinhos. Esse mal já foi sentido por pessoas no passado e será sentido por mais pessoas no futuro. Não somos ilhas. Os sinos que ensurdecem a nossa cabeça já entoaram noutros lados e voltarão a entoar. Estamos unidos na melancolia e no mistério do medo.

Comentários
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  • Duarte Vaz
    23 mar, 2018 Lisboa 19:39
    Sem dúvida, um artigo excelente, no patamar daquilo que é pior e mau da nossa literatura. Infelizmente, para o comentador João Lopes, alguns dos escritos sobre Giorgio de Chirico, foram copiados ou parafraseados de um artigo publicado no blog «Culture Mechanism», mais precisamente «The Melancholy and Mystery of a Street by Giorgio de Chirico (1914)». Na verdade, Henrique Raposo não tem mesmo nada para nos apresentar ou impressionar. O desejo ou mistério de sonho parolo de Henrique Raposo não passa de uma má comédia de enganos.
  • João Lopes
    23 mar, 2018 Viseu 14:49
    Excelente artigo de HR. É verdade: «Não somos ilhas. Os sinos que ensurdecem a nossa cabeça já entoaram noutros lados e voltarão a entoar. Estamos unidos na melancolia e no mistério do medo». Os seres humanos, temos a mesma natureza e um Pai comum, que é o Criador, o que nos faz ser irmãos, iguais e diferentes!
  • Geraldes Lino
    23 mar, 2018 Lisboa 14:12
    Péssimo o artigo de Henrique Raposo. Quer generalizar um conceito que lhe pertence e que só demonstra como ele é um ser doente, agressivo e a necessitar de ajuda (provavelmente médica). O medo existe em Henrique Raposo, porque este não é capaz de conhecer ninguém a não ser o seu próprio umbigo. O seu pequeno cérebro está cheio de conjecturas falsas que este tenta transportar para os outros, através deste e outros textos medíocres, desprovidos de força e sabedoria.
  • João Lopes
    23 mar, 2018 Viseu 12:46
    Excelente artigo de HR. É verdade: «Não somos ilhas. Os sinos que ensurdecem a nossa cabeça já entoaram noutros lados e voltarão a entoar. Estamos unidos na melancolia e no mistério do medo». Os seres humanos, temos a mesma natureza e um Pai comum, que é o Criador, o que nos faz ser irmãos, iguais e diferentes!