23 mar, 2018
Tenho um sonho idêntico a este quadro de Chirico, “Mistério e Melancolia de uma Rua” (1914). É um dos carrascos que faz plantão no meu sono: estou andando na rua no sentido sul – norte, de baixo para cima; vou encostado à parede do prédio à minha direita e sei que tenho de virar à direita na próxima esquina; no sentido leste - oeste, da direita para a esquerda, aproxima-se uma pessoa, está na rua que eu terei de percorrer assim que dobrar a esquina; só lhe vejo a sombra que se projecta assim, tal e qual como Chirico a pintou; momentos antes de virar a esquina e olhar de frente para a figura, entro em hiperventilação e acordo com medo. Tenho este sonho há tanto tempo que não sei responder a esta pergunta: o sonho é anterior à primeira vez em que vi o quadro de Chirico? Não sei. Seja qual for a resposta, comovo-me sempre que regresso a Giorgio de Chirico (1888-1978). Através do medo, ele leva-me a Deus e a uma ideia de humanidade partilhada com perfeitos estranhos que são meus irmãos.
A cultura do “óbvio” e da dessacralização do mundo diz-me que o sonho surgiu depois de eu ter visto o quadro pela primeira vez, entre o final do liceu e início da faculdade. Não tenho problemas com a tese. Nesta hipótese, o quadro foi um detonador visual que uniu vários pontos, vários medos do meu passado. Como diz Cormac McCarthy, o subconsciente funciona por imagens, por ícones, por metáforas visuais e não por palavras.
O meu subconsciente criou assim uma curta-metragem a partir desta matriz. E isto é espantoso. Como é óbvio, nunca conheci Chirico. É um homem de outro tempo, de outro país, mas a sua arte comunica com o que tenho de mais íntimo. Um quadro italiano de 1914, anterior às transformações morais e sociais provocadas pela I e II Guerras, tornou-se numa chave de uma cabeça portuguesa nascida um ano depois da morte do pintor em questão. Não há aqui cinismo que nos valha. Como é que se evita a comoção perante o poder litúrgico da arte que comprova a existência de uma humanidade partilhada, universal e intemporal? Sim, é verdade que esta partilha é feita no mal e no medo, mas não deixa de ser uma partilha entre épocas, entre classes, entre países, entre línguas.
Estou porém desconfiado de que a hipótese mais correcta é a outra: eu já sonhava com aquele quadro antes de o ver, ou melhor, Chirico foi assombrado por pesadelos idênticos aos meus. Eu, Chirico e milhões de outros seres humanos partilhámos, partilhamos e partilharemos aquele pesadelo. E, de novo, não há cinismo que trave a comoção perante a ideia de que percorremos todos o mesmo chão comum, mesmo que seja um chão de dor, medo e mal.
Mas talvez seja este, afinal, o papel da arte: comunicar que a dor que uma pessoa está a sentir aqui e agora não é uma dor isolada, específica e sentida apenas por essa pessoa. Não estamos sozinhos. Esse mal já foi sentido por pessoas no passado e será sentido por mais pessoas no futuro. Não somos ilhas. Os sinos que ensurdecem a nossa cabeça já entoaram noutros lados e voltarão a entoar. Estamos unidos na melancolia e no mistério do medo.