15 dez, 2017
Filha,
Nestas alturas do ano, o natal e o natal com praia também conhecido por Agosto, sou tolhido pelo medo. Sim, pelo medo. Este temor é ainda mais forte desde que tu nasceste. Porque é que sou dominado pelo medo nas épocas de maior felicidade? Não sei bem. Só sei que as sombras me vigiam de perto, marcam-me homem a homem; é como se uma sombra se escondesse em cada esquina; é como se o meu hardware não comportasse o software da felicidade, é como se tivesse sido concebido enquanto robô de combate sem direito a um prolongamento de vida e sobretudo sem acesso à bondade. Se calhar, o pai ficou demasiado danificado por coisas que já descrevi em livro e que continuarei a descrever; coisas que só compreenderás daqui a uma década.
Nos momentos de maior felicidade, quando abraças a tua irmã numa comovente declaração de amor, por exemplo, eu só fico sintonizado nessa bondade durante uns segundos; após cinco segundos, talvez dez se tiver sorte, as sombras aparecem; de um lado estás tu e a tua irmã aos abraços, do outro lado a sombra que vem do corredor. Fico com medo, é um medo idiota pois não tem uma causa palpável, mas está lá, é tão real como esta carta. Não sei estar feliz; assim que chego às alturas, sinto-me desconfortável, é como se não tivesse o direito de estar ali, é como se fosse um parolo ou bastardo sem o direito de estar na presença do Senhor, e sinto logo que alguma coisa má está prestes a rebentar. Será que só sei estar em guerra com o mundo e comigo mesmo? Sinto uma dissonância entre mim e a bondade ou felicidade. A bondade e felicidade emitem em FM, eu tenho um receptor AM. Quando a felicidade desaparece para dar lugar ao medo, tu continuas abraçada à tua irmã, mas eu não consigo voltar a sentir aquela paz; giro a roda da sintonia do meu rádio interior mas não a oiço de novo, só oiço estática. Por outras palavras, o pai não é um homem bom. Mas, se não sou bom, procuro ser decente. E é isso, minha filha, que te procuro ensinar através da fé cristã: decência.
Peço muitas vezes a Deus: por favor, Senhor, faça com que as minhas filhas cresçam na decência; faça com que o futuro conheça aqui duas pessoas decentes, isto é, pessoas com o discernimento para compreenderem, em primeiro lugar, e para anteciparem, em segundo lugar, as suas próprias falhas. Chegar às alturas da bondade é uma coisa rara e difícil. Contudo, isso não quer dizer que estamos condenados à anarquia do cinismo e do mal. Temos a decência, que é um metal mais humildade do que a bondade, sem dúvida. Tem porém uma vantagem: não é um metal das estrelas que cai de vez em quando, é um metal terráqueo e humanizável que podemos trabalhar na forja que é esta vidinha na cidade dos homens. E o âmago da decência, filha, é a consciência do mal, do mal que está lá fora na treva exterior, do mal que cada um de nós carrega cá dentro na treva interior. Apesar de te amar, apesar de seres mais valiosa do que a minha própria vida, tu não és especial, não és santa, não és boa por natureza. Mas podes e deves ser uma pessoa decente. Com o metal da decência poderás construir uma torre que te elevará acima da linha de água do pântano e que – por vezes - te permitirá dar saltos que elevarão a tua cabeça acima da linha das nuvens; esses breves momentos, que não conseguimos fixar, são antevisões da eternidade que nos espera. A eternidade é eu ficar a ver-te abraçada à tua irmã num innuendo sem fim.
Até esse momento chegar, temos de passar pela divisão. Tal como aconteceu há dias: chegaste da escola triste porque os outros meninos diziam que o menino Jesus não existe, que o Pai Natal é que é; sentiste indignação e surpresa por eles acreditarem numa coisa que não existe, mas também sentiste a pressão da solidão. Sentiste-te sozinha na tua crença e ficaste com dúvidas: mantenho a minha crença e fico sozinha, ou cedo e entro no grupo? Foi o teu primeiro teste de carácter, foi o primeiro teste à tua decência. É por isso que o pai ficou feliz (ou aliviado?) quando mantiveste a tua posição; jogaste os pés à parede e não cedeste. Essa coragem, meu amor, é o pilar de tudo. Essa coragem é um estilo e uma substância ao mesmo tempo. Se procurares a tal felicidade sem teres esta força a montante, serás como a cobra ou como o cão que tenta morder a própria cauda; vais andar perdida, ao sabor do vento e ficarás à mercê das sombras, que te vigiarão de perto.
É por tudo isto que o pai insiste tanto na ideia de tens de pedir perdão quando fazes alguma coisa de errado, como bater na tua irmã. Tens de pedir perdão à mana, ao pai, à mãe e sobretudo a Jesus, que também te vigia de perto, apesar da sua linguagem ser mais difícil de captar do que a linguagem das sombras.
Há dias disseste com ar triste que “Ele não responde, eu falo com Ele mas Ele não me responde, pai”. Responde, sim. Tens é de aprender a sua gramática, que é diferente desta. Com o tempo, com a ajuda do pai e sobretudo da tua mãe, a pessoa que me salvou, aprenderás a sintonizar o teu rádio interno na frequência Dele. E serás melhor do eu, estou certo. Até chegará uma época em que me ajudarás. Como assim? Já me consigo sintonizar com Ele, já tenho fé; resta-me sintonizar contigo, com a tua irmã, com os outros, com o mundo, isto é, falta-me ter esperança, falta-me não ter medo. Talvez chegue lá.
Há dez anos, a fé era uma impossibilidade para mim. Há dez anos, pensar num Henrique com fé e pai de crianças era tão inconcebível como pensar num Henrique astronauta. Se atravessei o deserto da fé, porque não atravesso o deserto da esperança? O Natal é isso mesmo, esperança e alegria. E, se calhar, o problema é este, filha: se já percebo a força da Páscoa, falta-me perceber a esperança do Natal. Ora, daqui a dez anos, já serás capaz de me ajudar nos passos finais dessa segunda travessia do deserto. Não te esqueças é de levar uma bengalinha ou voltaren.
Pai