22 fev, 2016 - 15:26 • Matilde Torres Pereira
“Encontrar uma paisagem é sempre uma surpresa.” De visita a Lisboa, Frédéric Coustols passeava perto do Castelo de São Jorge quando entrou pelo portão dilapidado do Pátio do Fradique. Pensou: “Esta é uma nova paisagem que quero coleccionar”. Só não percebeu o trabalho a que se estava a propor. “Coleccionar é uma coisa, mas significa que tens de cuidar”, observa.
Comprou a ruína, acreditando que estava a investir numa casa relativamente “pequena”. “Vista do pátio, tinha oito janelas e acabou. Nada de andar de cima. Seis meses depois, voltei a visitá-la e contei 365 janelas e portas… Pensei: não posso viver aqui sozinho!”
Seis anos de trabalhos de renovação – com 65 pessoas em obra todos os dias – e quase 30 milhões de euros depois (co-subsidiado pelo Estado português), o Palácio Belmonte, que serviu em tempos de inspiração e cenário para os filmes “Lisbon Story” de Wim Wenders e “Afirma Pereira”, com Marcelo Mastroianni, abriu como hotel de charme. Ou como “uma casa aberta a hóspedes”, como Coustols prefere descrevê-lo.
Nascido no Sul de França, Frédéric Coustols já passou pela China e pela
Rússia. Há 15 anos deixou-se cativar por Lisboa. De charuto na mão, calças xadrez e camisa
cor-de-rosa, abre as portas do seu agora imponente palácio enquanto conta como
o devolveu à vida.
De volta a 1640
Tratando-se de um monumento classificado, erguido em 1420 e ampliado para palácio em 1640, o projecto seguiu as linhas orientadoras da Carta de Veneza, que trata as obras monumentais como “portadoras de uma mensagem espiritual do passado” e utiliza técnicas tradicionais e materiais da época no trabalho de conservação e recuperação.
Com consultoria do especialista Pedro Quirino da Fonseca, Coustols deu-se inclusivamente ao trabalho de procurar telhas envelhecidas para toda a recuperação do telhado. A renovação do soalho de madeira envolveu a encomenda de 10 mil pregos forjados à época. “O orçamento inicial era três vezes menor que aquilo que acabámos por gastar”, ri-se.
A sustentabilidade foi uma preocupação. “Foi difícil porque eu não queria ar condicionado nem sistemas eléctricos, queria que voltasse ao estado em que estava em 1640”. A ventilação dos 3.700 metros quadrados acontece então naturalmente, com a circulação do ar a funcionar entre os saguões e os tectos altos abobadados, para “reduzir a pegada ecológica” do palácio.
Há electricidade, mas não há elevadores, nem televisão. Foi preciso pedir autorização para não os ter. “Não temos muitas coisas que são obrigatórias em hotéis.”
“Viver no meio da beleza ajuda as pessoas a viver melhor”
Com o apoio do programa RECRIA, da Câmara de Lisboa, Frédéric Coustols decidiu, na altura das obras, ajudar a recuperar 25 apartamentos à volta do palácio. “Pensei que as pessoas mereciam isso. Eu estava aqui a fazer uma coisa incrível e elas estavam a viver em sítios sem casas de banho”, conta.
“Isto é pensar na vida na cidade. Quando parte da cidade pertence a pessoas mais abastadas, os preços sobem e os mais pobres têm de sair. Isto é uma perda porque uma comunidade é uma comunidade e não a podes mudar demasiado rápido”, defende. “Não as podes deitar fora [as pessoas].”
Tendo feito fortuna com a venda de acções nos anos 1990, Coustols rejeita uma visão economicista do mundo. “Nem tudo se reduz a um ‘business plan’”, reitera. Manter os vizinhos por perto foi “manter o padeiro, o talhante, o cafezinho”.
Tudo parte dum conceito estético em que o francês se gosta de entrincheirar. “Viver no meio da beleza ajuda as pessoas a viver melhor. Devia ser obrigatório”, considera.
Coisas bonitas dão boas pessoas? Da varanda do Palácio Belmonte numa manhã de sol, é fácil acreditar que sim. E quanto a pensar a cidade, Coustols também tem uma prescrição. “Se cada pessoa que recupera uma casa partisse do passado para olhar para ela como parte da cidade, mudaria tudo.”
Uma casa para as artes
Coustols gosta de ver o seu palácio como uma “casa para as artes” e para isso convida artistas e criadores para pensarem o espaço e deixarem rasto das suas ideias. Organizam-se “workshops” e residências artísticas, as salas ladrilhadas a azulejo tradicional contêm mobiliário antigo que convive com peças contemporâneas, algumas da autoria do próprio. Mas é um espaço depurado, onde a amplitude importa e o edifício é protagonista.
O objectivo é também chamar hóspedes que apreciem estas características e “ter pessoas agradáveis a produzirem coisas agradáveis”. E para Coustols, claro, é também uma forma de conhecer pessoas. “O Jeremy Irons ficou cá um mês; tomávamos pequeno-almoço juntos, jantávamos, bebíamos muito champanhe… muito champanhe”, diz a rir-se.
Há tempos, o curador Mário Caeiro e também “coleccionador”, de certa forma, mas de arte urbana, deu com o palácio e descobriu uma instalação que estava patente na altura. Mais tarde, conheceu o dono do Belmonte e nasceu um projecto colaborativo. Caeiro chamou os artistas, que passaram uma temporada no hotel a pensar a intervenção, e, no final do ano passado, puseram mãos à obra.
Até final de Março, está acessível o resultado dessa colaboração: a exposição "Lightcraft", com intervenções nas salas e nas ruínas que rodeiam o palácio e que pode ser visitada por marcação. É um pretexto para conhecer este monumento nacional meticulosamente renovado e saborear a interacção do espaço centenário com a contemporaneidade das peças que nele habitam.