A vida de um refugiado que fugiu ao Estado Islâmico na cisterna de um camião e naufragou no mar Egeu, conta-se em 6.000 palavras no livro “De Mosul a Alfeizerão”, a lançar esta sexta-feira nas Caldas da Rainha.

“Após tantos tormentos para fugir à guerra e à morte”, Daud Al Anazy chegou a Lisboa a 17 de Dezembro de 2015, “num voo cheio de esperança” e vontade de “encontrar um sítio tranquilo” onde pudesse “refazer a vida e descansar de tanta incerteza”.

O sítio encontrou-o a cerca de 100 quilómetros, numa freguesia de Alcobaça, onde foi alojado com mais um iraquiano e um eritreu, e os tormentos conta-os no livro “De Mossul a Alfeizerão” em 6.000 palavras, tantas quantos os quilómetros que separam as duas cidades.

A ideia do livro partiu de Helena Lopes Franco, professora que no último ano tem ensinado português ao grupo de refugiados, e autora da obra escrita “a quatro mãos”, cujos lucros, “revertem integralmente para ajudar Daud a refazer a sua vida”, disse à agência Lusa.

Foi chicoteado e sem pele nas costas

A vida do mais novo de nove filhos de um talhante de Mossul, no Iraque, conta-se nos nove capítulos do livro que aborda desde a infância feliz, num tempo “sem sobressaltos nem contrariedades”, à juventude empreendedora do rapaz que aos 18 anos iniciou o seu negócio como taxista e, dois anos depois, em 2011, com os lucros, abriu um café.

“Tinha uma vida muito, muito boa”, afirmou Daud. Mas “tudo mudou” quando em Junho de 2014 elementos do grupo jihadista tomaram Mossul e fizeram da cidade a capital do seu autoproclamado Califado.

Dos irmãos de Daud, três eram polícias (dois dos quais foram mortos pelo Estado Islâmico) o que fazia com que o café fosse frequentado por “polícias, membros do Governo e muitas pessoas importantes”, recorda o jovem a quem quiseram “obrigar a dar os nomes e moradas dos clientes”.

Recusou e foi preso, acusado de ser “fumador e vestir à ocidental”. Foi condenado a 80 chicotadas que deixaram “inconsciente” e sem pele das costas, conta no livro. A essa prisão seguiram-se mais três. O café fechado. O táxi parado.

Quando o pai lhe ordenou que partisse porque não queria “chorar a morte de mais filhos”, Daud comprou, por mil dólares, a fuga para a Síria. A viagem foi feita no depósito de um camião cisterna, apinhado de adultos e crianças, intoxicados com o cheiro do petróleo, da urina e da fezes “pelas pernas abaixo”, ao longo de nove horas em que, recorda, “não éramos seres humanos, apenas carga”.

Sobreviveu no “mar da morte”

Da Síria caminhou dois dias até à fronteira com a Turquia, que atravessou a fugir das balas. Depois de 10 dias na Turquia, pagou 1.700 dólares ao dono de um barco que o atravessaria até à ilha de Lesbos, na Grécia. Eram 300 pessoas num barco de oito metros e dois andares que, ao fim de meia hora, se afundou no mar Egeu.

Um colete de 10 dólares e uma bóia a que se conseguiu agarrar (com duas crianças de dois e quatro anos) durante as mais de quatro horas que esperou para ser resgatado, salvaram-lhe a vida num “mar de morte” com “cadáveres por todo o lado”.

Daud foi “o último a ser salvo” e naquele mar deixou “os documentos, o dinheiro, o telemóvel com fotos e vídeos, tudo o que tinha”, disse à Lusa. “Só a vida tinha ficado”, diz no livro.

Depois de um mês e meio num campo de refugiados viu-se finalmente a caminho de Alfeizerão, onde vive agora com mais dois iraquianos, um eritreu e dois sírios.

A um mês de completar 25 anos é empregado na Casa do Pão do Ló, fala português, tem conta no banco e está a tirar a carta e condução, com a cabeça a fervilhar de ideias, como “voltar a ter um táxi” e “namorar uma portuguesa”.

A Mossul não conta voltar e das "tormentas" ficou-lhe “muita vontade de ser feliz”, como revela no final do livro que hoje apresenta no Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha.