Chegam a Portugal com o sonho de jogar num clube da I Liga, muitas vezes iludidos sobre as condições que vão encontrar. Alguns dormem nos próprios estádios, em dormitórios improvisados para o efeito, sem janelas, e sem as condições mínimas de habitabilidade. Outros comem mal, passam dificuldades financeiras. A situação verifica-se em todo o país. Só no distrito da Guarda, há 40 atletas estrangeiros a jogar futebol. Não recebem salário, só ajudas de custo.

Brasil, Senegal, Cabo Verde e Irão são algumas das nacionalidades destes homens. Alguns já foram estrelas, mas quando não rendem em campo, por vezes, são “abandonados” à própria sorte pelos empresários. Regressar ao país de origem sem ajudar a família? Nem pensar.

No distrito da Guarda, o Clube Desportivo de Gouveia é o que mais tem jogadores estrangeiros. Abdoulaye Daffé, 22 anos, ponta-de-lança, joga no terceiro escalão do futebol português. Veio do Senegal para Portugal em Dezembro de 2015. Começou no Grupo Desportivo de Chaves, onde queria ter continuado, mas uma lesão mudou-lhe os planos e obrigou-o a estar “parado”.

Antes de ir parar a Gouveia, passou pelo Aljustrelense, do Alentejo. Sonha jogar na I Liga e garante que vai conseguir lá chegar. Com “uma média de dois golos por jogo”, o senegalês é uma das “referências” do Clube Desportivo de Gouveia, diz o presidente Alberto Cardoso.

O dirigente recorda o ano em que Abdoulaye foi literalmente abandonado pelo empresário que o acompanhava. “O suposto empresário, mercenário, durante a época, desligou-se do acompanhamento ao atleta e Abdoulaye não tinha para onde ir, não tinha família cá. Acabámos por proporcionar alojamento, alimentação e dinheiro para algumas despesas diárias. Estes jogadores são considerados jogadores amadores, não têm uma retribuição, mas nós damos uma pequena compensação que varia entre os 100 e os 300 euros”, explica à Renascença.

Segundo a Associação de Futebol da Guarda, no distrito da Guarda, só há jogadores de futebol amadores.

Dormir no estádio

No Clube Desportivo de Gouveia, os jogadores estrangeiros têm alojamento e alimentação no Seminário de Gouveia, através de um protocolo celebrado com o clube.

Ao longo dos últimos anos, o padre Carlos Jacob tem apoiado dezenas de jogadores estrangeiros. Ouve-os a descrever uma realidade que é, por vezes, escondida por dirigentes e atletas. “Esta é uma forma de escravatura dos tempos de hoje”, denuncia.

“Não haja dúvida que o eldorado que os atletas tentam é defraudado e há situações dramáticas. Este mercado de jogadores cria mais ilusões que proveitos. Vieram na certeza de que iriam jogar e depois ficam aqui vários meses sem jogar e outros nem no banco se sentam. Há intermediários [empresários] muito maus”, acrescenta.

No alojamento do Seminário de Gouveia, estão 12 atletas estrangeiros. Ouvem-se histórias, desabafos.

Cleony Teixeira, 23 anos, veio do Brasil para Portugal há seis meses. Confessa que ficou assustado quando há pouco mais de um mês foi contactado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). “Tenho que retornar ao Brasil para regularizar a situação. Eu não estou legal, mas vou resolver a questão do visto. Vim para cá sem ser certo, vim fazer a avaliação, mas houve uns problemas com o SEF e tenho que voltar. Até ao dia 22 de Junho tenho que voltar ao Brasil. Tenho mais dois colegas nesta situação”, conta.

Elvis, 20 anos, com origens em Cabo Verde e conhecedor da realidade do futebol em Lisboa, diz que há jogadores estrangeiros a dormir nos próprios estádios de futebol.

“Os empresários trazem os jogadores para cá e metem-nos a jogar para ver. Se não der para jogar, deixam-nos sem as documentações. Tive um caso de uns amigos que dormiam debaixo do estádio. E nem vou falar da alimentação… Dormiam mal, ninguém gostaria de dormir debaixo de um estádio. Venho para aqui para demonstrar qualidade e não para dormir debaixo do estádio”, critica.

Pão, água, leite

A maioria dos jogadores que a Renascença contactou não quis prestar declarações. Têm medo de falar com jornalistas. A Renascença tentou também visitar, conhecer e fotografar os dormitórios de alguns estádios.

Sob anonimato, um jogador hospedado no Seminário de Gouveia denuncia que em vários clubes do país há jogadores estrangeiros sem alimentação adequada. “Sei de um clube cá em Portugal com jogadores do Zimbabué em que o empresário deles meteu-os todos a viver num apartamento e dava-lhes alimentação muito fraca, baseada em pão, água e leite. Supostamente, no país deles comiam pior, era a teoria dele”, lamenta.

Grande parte dos jogadores estrangeiros chega a Portugal com visto de turista (duração aproximada de três meses) para prestar provas e ver se tem qualidade para jogar e conseguir contrato de trabalho desportivo.

O SEF tem feito inspecções regulares aos clubes e associações desportivas, afirma Amadeu Poço, presidente da Associação de Futebol da Guarda. A Renascença tentou obter dados do SEF, sem sucesso.

Paulo Claro, colaborador da empresa IberSport, sedeada no Luxemburgo, recebe centenas de e-mails de atletas estrangeiros a querer vir para Portugal. “Conheço relatos de atletas que falam em condições desumanas, mais no caso de africanos e sul-americanos”, confirma à Renascença.

O interior desertificado e a dificuldade em constituir uma equipa fazem António Gouveia, presidente e treinador do Vilanovense, receber jogadores estrangeiros – foram 15 nesta época. Uns ficaram num apartamento, outros num dormitório criado para o efeito no próprio estádio de futebol. “O dormitório tem condições, o SEF esteve cá e estava tudo correcto.”

Quem já tem casa própria é Oumar Bakayoko, do Senegal. Tem 32 anos, acaba de constituir família – é pai de Fallou, que tem dois meses. Está no Clube Desportivo de Gouveia há três anos. “Sinto-me bem aqui, a minha chegada foi um espectáculo, estou feliz, cinco estrelas, não tenho nada a dizer – só agradecer a Deus”, sorri.

O defesa central, que trabalha durante o dia numa empresa da região e à noite treina, elogia o clube onde joga, mas não esquece todos os relatos que escuta diariamente de colegas de outros clubes do país.

“Tenho colegas que estão a sofrer, não recebem na hora certa, não comem bem, não dormem bem. Não está fácil, mas há que aguentar até arranjar algo melhor porque se eu regresso e não tenho nada, vou sofrer. Todos pensam ‘se jogas à bola, és rico’, nem ligam se jogas na terceira divisão. Para a família, jogador tem que receber como Cristiano Ronaldo”, desabafa.